Fora de série (12)
É muito provável que os nossos filhos e netos olhem um dia para os filmes e para as séries dos anos 80 e pensem: aquela gente era louca. Olhando nós para trás, não admira: perante o mundo cada vez mais entricheirado, mais intolerante, mais politicamente correcto e mais mal humorado, o atrevimento e a irreverência daquela década não tão distante quanto isso parece quase remetê-la para os confins longínquos da História. Não tenhamos ilusões: muitas produções dos eighties não chegariam hoje à pré-produção, pela certeza de que iriam ferir susceptibilidades num mundo onde o humor mais atrevido se tornou numa espécie em vias de extinção.
A série que vos trago hoje não teria qualquer hipótese de passar pelo politicamente correcto deste ano da graça, mas com muito pouca graça, de 2016: Sledge Hammer!. Numa época em um espirro vai ofender um ou outro grupo, as tropelias do polícia violento, misógino, e machista interpretado de forma inspirada por David Rasche iriam fazer a Internet - o palco de todas as indignações contemporâneas - esgotar o stock de forquilhas e archotes virtuais. Pouco importaria que a série fosse uma sátira especialmente bem conseguida ao Dirty Harry de Clint Eastwood e à tradição de bad cop dos anos 70. Pouco importaria que o registo propositadamente exagerado dos episósios em momento algum permitisse dar alguma seriedade às tiradas do inspector Sledge Hammer. Para as brigadas da indignação selectiva, nada daquilo seria admissível.
Para mim e para o meu melhor amigo de infância, Sledge Hammer! não só era admissível como era uma delícia. É claro que não compreendíamos a sátira da série (nem teríamos as referências para tal), mas nem por isso deixávamos de nos divertir imenso com aquele humor deadpan, a ver Sledge Hammer desenrascar-se apesar da sua inusitada incompetência, a causar enxaquecas ao inesquecível Capitão Trunk e a safar-se de sarilhos diversos graças à determinação da sua segunda parceira Dori Doreau (a primeira, como se sabe, era a Magnum de calibre .44 pela qual Sledge Hammer seria capaz de colocar as mãos no fogo).
À distância destes anos, já não me consigo recordar qual era a minha idade exacta quando descobri Sledge Hammer!, ou em que canal a série passou (provavelmente na RTP, mas talvez já tenha sido na SIC daqueles primeiros e revolucionários anos). Mas lembro-me de vê-la, e da marca indelével que deixou: as imagens perduraram na minha memória, mesmo quando durante anos tentei, sem sucesso, recordar-me do título daquela série com o polícia maluco que falava com a Magnum. Enfim, maravilhas da Internet: o título foi recuperado e a série foi revista. Continua exagerada, atrevida e muito, muito divertida. E, ironia das ironias: ainda que seja profundamente filha do seu tempo e impossível de ser concebida noutra época que não nos anos 80, talvez a sua sátira seja mais actual e pertinente hoje, trinta anos volvidos, neste novo e estranho milénio.