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Delito de Opinião

Fora de série (11)

Rui Rocha, 26.05.16

ling chung.jpg

Do fundo da memória, desse mesmo tempo em que esperávamos o início da transmissão  televisiva a mais de meia tarde olhando para a mira técnica, em que o indicativo da Eurovisão prenunciava quase sempre os Jogos sem Fronteiras (quando não calhava tratar-se de uma transmissão da filarmónica de Viena para profunda decepção deste que aqui escreve), em que Vasco Granja pronunciava o nome de Tex Avery e os olhos já brilhavam, recupero vagas imagens de loucas correrias de hordas de guerreiros, de bandeiras ao vento, de artes marciais improváveis, de códigos de honra inquebráveis apesar das maiores vilanias. Ling Chung era um herói. E Ling Chung era eu quando segurava um ramo que se assemelhava à sua espada para correr pelo quintal da avó Palmira com o cabelo ao vento (e meu Deus, como em Espinho fazia vento) em perseguição do ignóbil Cau-Chi, ou lá como se chamava. E invariavelmente o Cau perdia, dobrado o cobarde, ali de joelhos onde o quintal acabava. Perdia o Cau e perdiam os morangueiros que o avô Adriano tinha plantado que nisto de perseguições a tiranos não podia o herói afastar-se do seu caminho da justiça cá por coisa de meia-dúzia de morangos. Claro que até os heróis cometem erros. Ling Chung cometia-os na série, mas nunca desistia. E eu, embora menos, também cometi alguns quando no Sisto, Silvalde, Espinho, Distrito de Aveiro, nos anos 70 do século XX, entrava na pele do justiceiro que vivera na dinastia Song. Ou não terei cometido um erro naquela tarde de Verão em que, empunhando a espada-ramos, zurzindo-a em todas as direcções, defendendo os imaginários companheiros de Ling Chung da injustiça, enfiei tamanha bordoada no Monteiro que andava a sulfatar as fruteiras que o homem perdeu o controlo da escada e aterrou de bruços no meio das couves-pencas? Cometi pois. E nestes casos há que saber recuar quando a batalha está perdida para evitar maiores danos. Retirei a todo o vapor, correndo mais do que Ling Chung correra em qualquer episódio, enquanto o Monteiro Cau-Chi me perseguia, com metade da cara azul do sulfato e a outra metade vermelha do impacto da aterragem. E só parei na cozinha, recuado já em linhas defensivas, bem atrás da saia da minha mãe. Que embora não aparecesse na série, o Ling Chung também havia de ter mãe que devia gostar muito dele. E pronto. Para os que não viram ou já não se lembram, se não me engano, o Ling Chung era aquele que está ali em cima de amarelo. E digo se não me engano porque já não me lembro muito bem dele, embora me lembre como se fosse hoje da cara do Monteiro Cau-Chi  com o nariz espetado entre as pencas ou, visto de outro ângulo, com as pencas espetadas no nariz.

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