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Delito de Opinião

Fora de série (10)

Diogo Noivo, 25.05.16

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A propósito do vício da nostalgia, Pedro Mexia escreveu que compramos “as séries de televisão de que gostávamos na adolescência, mesmo que a magia não resista à revisitação”. Creio que a magia não resiste à revisitação quando esta é feita por outrem. Isto é, quando alguém decide ir ao passado recuperar uma fórmula de sucesso e arrastá-la para o presente. Tal como ligar a uma ex-namorada às 3 da manhã para reatar uma relação perdida no tempo, estas reanimações de experiências já vividas acabam quase sempre de forma nefasta. A 10ª temporada de Ficheiros Secretos, composta por 6 episódios e emitida este ano, confirma a regra. Vi esta última temporada com o temor de quem sabe que não devemos regressar aos lugares onde fomos felizes – mesmo que se trate de um lugar catódico. E o temor confirmou-se. Mas já lá vamos. Comecemos pela série original, emitida entre 1993 e 2002, pela cadeia televisiva Fox (chegou a Portugal um ano mais tarde pela mão da TVI e está agora a ser emitida na RTP Memória).

 

 

The Truth is Out There

Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully (Gillian Anderson) são os agentes do FBI responsáveis por investigar casos paranormais. Evidentemente, as mentes medianamente ilustradas olharão com desdém para a série. À primeira vista, a coisa resume-se a monstros e a discos voadores, tudo assuntos de gente que se entretém com pouco. Mas nos Ficheiros Secretos nada é o que parece ser.

O tema central de X-Files é a desconfiança em relação ao Estado. Trata-se de uma crítica aos abusos da política e aos poderes fácticos que sequestram o Estado. Aliás, parte do brilhantismo da série reside precisamente nas várias referências a um dos casos mais célebres de abuso de poder por parte de um governo: Watergate. Por exemplo, o ‘X’ que Fox Mulder desenhava com fita adesiva na janela do seu apartamento, sinal usado para convocar o misterioso informador que sabia mais do que dizia (na verdade, ao longo das 9 temporadas Mulder teve vários informadores), é uma alusão directa à pequena bandeira encarnada que o jornalista Bob Woodward colocava na sua varanda quando desejava falar com Deep Throat, o informador que delatou Watergate. Fiéis ao caso que inspirou a série, os encontros de Mulder com as suas fontes eram conversas de meias palavras e ocorriam sempre em ambientes lôbregos, dignos sucessores dos locais sombrios e discretos onde Woodward e Deep Throat se reuniam.

 

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Contudo, as reminiscências da História contemporânea dos EUA não se ficam por aqui. O personagem Smoking Man, também conhecido por Cancer Man, interpretado por William B. Davis, mais do que o vilão de serviço e a personificação dos poderes ocultos que corrompem a democracia, é um elo permanente à memória colectiva norte-americana, em particular, às várias teorias da conspiração que dão cor ao passado recente dos EUA. Segundo X-Files, o Cancer Man assassinou Martin Luther King, assassinou JFK e fez de Lee Harvey Oswald o bode expiatório. Enfim, de eventos desportivos memoráveis a guerras civis no estrangeiro, o Cancer Man fez História, condicionando-a e alterando o seu curso em momentos determinantes, sempre embrulhado num manto difuso onde a conspiração e o mito são intencionalmente confundidos.

Entre 1993 e 2002, os Ficheiros Secretos pautaram-se por guiões impecavelmente escritos. Os monólogos em off de Mulder e Scully, que muitas vezes abriam os episódios, são peças com qualidade literária indiscutível. Vale a pena referir ainda que as nove temporadas iniciais da série estão marcadas por inúmeras pistas mais ou menos ocultas, essenciais para entender a história de fundo, mas também para compreender a construção dos personagens. Veja-se, a título de exemplo, a Twin Paradox Theory, de Albert Einstein. Em traços gerais, os possíveis para o leigo que sou, Einstein demonstrou que dois irmãos gémeos, por força do movimento e da inércia, podem ter idades diferentes. Portanto, duas criaturas idênticas e nascidas ao mesmo tempo podem estar separadas por anos – e por todas as experiências contidas nesse hiato. Ora uma das ideias centrais por detrás da dinâmica entre Mulder e Scully é precisamente esta teoria de Einstein. E o espectador atento e curioso podia descobrir a relação. Logo no primeiro episódio da primeira temporada, vemos a tese de doutoramento de Dana Scully, intitulada “Einstein’s Twin Paradox Theory: A New Interpretation”. Umas temporadas mais tarde, já não me recordo exactamente quando, é o Cancer Man a referir-se a esta teoria de Albert Einstein num contexto que claramente apontava para a dupla de protagonistas. Diga-se que estas pistas ocultas fizeram escola: que seria da série Lost –Perdidos sem os Ficheiros Secretos?

 

A revisitação falhada

O regresso da série ao fim de 14 anos gerou uma expectativa tremenda. Mas, como referi no início deste post, foi uma decepção total. Desapareceram as referências às grandes teorias da conspiração da política norte-americana, os diálogos podiam ter sido escritos por uma criança em idade pré-escolar, e o ambiente soturno que caracterizou as temporadas anteriores foi substituído por um registo de sitcom. Voltámos para os braços da ex-namorada, mas o tempo passou e ela mudou. Esta 10ª temporada teve, contudo, um grande mérito: valorizar ainda mais as 9 temporadas originais e fazer dos X-Files uma série de culto imune às agruras da passagem do tempo.

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