Fictiongram, continuação da continuação
O escritor não era incauto. Tinha mantido relações, quase que íntimas, com um advogado com bom nome na praça e - talvez - fosse verdadeiramente inteligente fazer o gesto de lhe ligar. Podia resolver o problema das cartas, as ditas cartas que escrevera a Jaime e que ele ameaçava publicar. Não utilizara esta história, nem transfigurada, no novo romance, tinha-se mantido numa tónica emocional, forte, achava ele, bom, podia não ser tão forte, mas intencional, e remetia-se à vida de sete criaturas. Tudo começara com o Jaime de olhos cor de caramelo e depois a história tinha-lhe dito: agora vais para ali.
Ele foi. Primeiro para dentro da cabeça de uma mulher, a detestável Carmen, histérica e porventura frígida Carmen que foi abandonada pelo Jaime ficcional e depois catrapiscada (será?) pelo irmão, o tal Paulo que, basicamente, era a única personagem que lhe agradava sobremaneira. Lá está, era um homem de bem, o tal Paulo. Era uma maldade colocá-lo na mira de Carmen, mas fazer o quê? Quando o livro for adaptado para o cinema ou para uma mini série, logo será vendida para a América Latina, onde faz tanto sucesso, pois o plot funciona e isso é que importa.
O escritor sente-se a perder o pé, o que se calha a ser sincero, acontece-lhe mais vezes do que aquelas que admite. Obriga-se a uma pausa para recuperar prioridades, tem de se organizar. É crucial perceber as coisas que precisa de fazer. Tem de acabar ao livro, é um facto, não vai devolver o adiantamento chorudo que a editora lhe pré-pagou, terá de entregar o romance para a feira do livro, e terá de fazer o esforço sobre humano de se deslocar à dita feira. O escritor levanta-se e anda pelo escritório, as mãos atrás das costas, pondera: ligo ao advogado por causa das cartas? Trato do livro ou simplesmente atendo o idiota do Jaime, histérico qual Carmen? O melhor será beber um copo de qualquer coisa e, a caminho desse desejo alcoólico, viu-se em pequeno numa fotografia. Ele, a mãe e as tias. Naquela época estava convencido de que tinha sido adoptado. Ele, de cabelos loiros e olhos claros, ao lado da mãe mais morena do mundo. Tinha sido enganado e isso dera azo à construção da personagem aparvalhada de Martim. Não era um bom personagem.
O escritor tinha a sua certidão de nascimento, aliás já fora publicado na fotobiografia feita há dez anos, ou coisa que o valha. Ali está o nome do pai e da mãe e não há a menor dúvida que não veio da Casa Pia, veio de uma clínica privada que já não existe. Talvez o pai fosse loiro. Talvez. Não podia assegurar-se de tal facto já que só possuía duas fotografias do pai, ambas a preto e branco, num dia em Coimbra, com os amigos, um dia de caçada. O que podia assegurar é que o homem tinha pinta. Traidor e imbecil, mas com estilo.
Cristo, que disparate pegado, tenho lá a vidinha toda metida?, vai resmungando consigo enquanto bebe um whisky e revê mentalmente a história. Claro que o melhor será matar alguém. O seu pai está metaforicamente morto, resolvido. Ou talvez já esteja mesmo debaixo do chão na cidade maravilhosa. Como saber? Não quer saber, o escritor só se interessa por ele, pela história e, claro, pela recuperação das cartas.
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