Fictiongram, continuação da continuação
Nessa noite carioca bebeu caipirinhas a mais e acabou numa festa de alguém que conhecia outro alguém. Conheceu pessoas, mantendo a sua pose de Estado, a sua figura meio desfeita, porque a sua imagem de marca era ser um homem triste. Era sempre assim que se referiam a ele, triste, tristonho, capaz de toda a tristeza do mundo. E ele acatava, mais uma vez cumpria. Nunca se imaginou obediente, no entanto a importância do público – quer dizer, da comunicação social – levava-o a ser assim. E a comunicação social, como é bom de ver, está em todo o lado, é uma espécie de Nosso Senhor.
Tinha tiques que importava manter, porque estavam à espera que fizessem parte dele, assim como um casaco velho que se mantém no armário por estar feito ao corpo. Então, o escritor era triste. E não ia a festivais literários, porque haveria de ir?, era crucial não ir a festivais literários, só de pensar que tinha de aturar a mesma corja ... Suspirou e voltou a olhar para o telemóvel mudo e quieto na secretaria de mogno, coisa de excelência, comprada num antiquário em Sintra quando ainda mantinha relações com um casal de editores que se gaba de ter um palacete para aqueles lados. Eram outros tempos. Ainda conseguia conversar com o casal extraordinário, ele alto e barbudo; ela magra e esguia, com umas mãos gigantes. Volta a olhar para o telemóvel que mostra 17 chamadas não atendidas, isso sim, um luxo. O ex namorado era persistente.
Chamava-se, et pour cause?, Jaime e tinha uns olhos verdes infinitos. Foi isso que lhe disse quando foram apresentados na editora, o escritor pronto a assinar em série, qual máquina, livros atrás de livros com dedicatórias idiotas tipo
Um abraço
Com amizade
Era sempre isso. O assistente editorial a querer saber se ele não se importava, se fazia o jeitinho, de assinar para a mãe. Ou era para a mulher? Não sabia dizer. O certo é que Jaime, o Jaime real, estava a fumar à janela, num gabinete cuja vista dava para o local onde o escritor assinava livros para jornalistas que nunca falariam da sua narrativa, do trabalho de linguagem, da espessura (talvez profundidade seja melhor) da história que publicava então.
Era uma história de amor, portanto era sobre a condição humana. Riu-se, para si, por saber que quem tinha dito esta verdade absoluta sobre a forma como a literatura é vista amiúde, neste e em outros países, era apenas uma mulherzinha que, de facto, privilegiava os sentimentos e as pessoas. Agora tinha deixado de escrever, ele tinha sido informado online, horas mortas pela noite na versão solteiro de novo; a escritora que bradava aos céus sobre a condição humana anunciou ao mundo que deixou de escrever. Por não aguentar o silêncio sobre a sua obra. A sua obra.
O escritor voltou a rir e pensou que a designação “obra” era risível. Quantos anos tinha a moça? Pouco importava, o olhar fixou-se no fumo que saía da boca de Jaime e foi o início que depois deixou de ser início e, claro, perdeu a graça. Pediu ao assistente editorial um copo de água e, mal a criatura diligente rumou em direcção à copa da editora, onde supostamente haveria água e outras coisas (podia até comentar como ele hoje, o grande escritor, estava bem disposto; podia dizer que já tinha o seu autógrafo para a mãe, ou seria para a mulher?), abriu a janela do pequeno espaço inócuo onde estava a assinar livros. Sorriu. Tristemente. E a coisa deu-se.
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