Fictiongram, continuação da continuação
E quando chegou aqui o escritor parou. Era uma dor de costas, um bloqueio. Podia – devia – matar uma das personagens? Martim fica com a herança de Carmen? Carlota torna-se banal? Tantas perguntas e poucas respostas. E, nisto, o telemóvel tocou. O escritor gemeu baixinho, o nome do ex namorado do outro lado. Iria dizer que precisavam de conversar. Iria dizer um chorrilho de disparates que ele, o escritor, dispensava. Até a voz, a hipótese teórica de o ouvir, afligia. Pensou que era um chuto na tola, como tinha ouvido no café a um gaiato com pouco mais de dez anos. Chuto na tola.
Até podia falar com o ex namorado, porque não?, mas um escritor é aquele que não pactua com a norma. Tinha lido aquilo algures e não percebia como ele, publicado dentro e fora de portas, a escrever todos os dias dez mil palavras, obediente, sem falhas (tinha-o dito numa entrevista e não podia deixar de cumprir, sentia que seria desonesto se não cumprisse o sacrifício das dez mil palavras. Caramba!, dez mil palavras é muito, há pareceres jurídicos mais pequenos), precisava de citar terceiros. O escritor ficou a olhar para o nome do ex namorado a piscar no telemóvel e, subitamente, sem demoras pegou na caneta e rabiscou o futuro de Carmen.
Embirrava com Carmen, não seria o único, estava certo disso, mas tinha esta tendência para escrever sempre sobre uma mulher depressiva. Lembrava-lhe a mãe, era o que era, e o escritor já tinha passado muito tempo a fazer psicanálise para entender que nunca se livraria da mãe, o fantasma dela, a voz dela, as suas manias, o pacote inteiro a persegui-lo até depois da senhora ser cremada. Morte. O escritor sorri. Coloca o telemóvel no silêncio, afinal para quê dar a satisfação de atender à primeira?
Diziam que ele era caprichoso e com mau feitio, portanto importava seguir a tendência. O escritor não tinha mau feitio, nem era caprichoso, pelo menos no seu entender. Não se sabe o que diria o psicanalista, mas isso não interessa nada para o caso. Se fizesse uma auto-análise, exercício matinal que lhe afagava o ego, o escritor diria que é uma pessoa atormentada, com uma infância difícil, sempre dentro dos livros. Não foi à guerra, como outros, não tem idade; nunca foi jornalista, também os há, é apenas um escritor pacato. Talvez não seja gentil ou um poço de delicadeza, é verdade, porém é um homem de bem. O que importa verdadeiramente é ser isso: do bem. Sorriu beatificado.
Imagina o seu pai. Esse alguém que o abandonou com dois anos de idade para desfrutar de outras manhas – umas manhas brasileiras, para cumprir o cliché já que a vida também isso, ou talvez seja só mesmo isso – do outro lado do Oceano Atlântico. Consta que teve mais dois filhos e o escritor, ferido e implacável, uma vez no Rio de Janeiro, a propósito da entrega de um prémio importante, escusou-se a falar desse pai. Alguém, um jornalista de um diário digital, agora é assim, o papel está caro, insistiu muito na ideia idílica de um encontro, ao fim de trinta e tal anos, com o pai, esse traidor, que agora queria, quem sabe?, ver-se numa selfie com o escritor.