Fictiongram, continuação da continuação
Quando a verdade não liberta
Laura manteve-se em silêncio, certa de que Carlos conseguiria dominar o histerismo de Maria Luísa que, depois de tanto rir, se queixava de uma dor de cabeça explosiva, pronta para berrar de dor, instável, eléctrica. Paulo não se mexia. Mantinha-se sereno e Carmen, ao seu lado, tentava não olhar para a mãe. Laura teve pena dos dois. Depois teve pena de todos. Carlos vivia com Maria Luísa por imposição do estatuto, Coimbra também tinha esse encanto. Maria Luísa castigava-o, ainda agora, por ter libertado o coração num outro território. Laura ouvia tudo com atenção. Tinha-se deixado vestir de forma apropriada pela antiga amiga e, naquele momento, só tinha vontade de rasgar o vestido azul escuro, deitar as pérolas ao chão e exigir qualquer coisa que não sabia nomear. A liberdade dela nunca fora verdadeira. Laura entendia agora que nada, nada na sua vida, era mais do que um adiar do encontro com Maria Luísa e Carlos, como se a ligação entre eles fosse essencial para um significado real.
Jaime conseguiu ouvir o relato do irmão com alguma dificuldade. O álcool toldava-lhe, tornando-as imprecisas. Tinha deixado Martim numa discoteca e andara até a casa, não sabia quantos quilómetros, mas muitos, pareciam-lhe muitos passos numa Lisboa fria. Quando viu a sms do irmão a pedir para ligar fosse a que horas fosse, percebeu a urgência pela forma como o coração desatou a gritar no peito. Pontadas. Repentes vertiginosos que o obrigaram a parar. Respirou fundo e ligou para o número de Paulo, o único que tinha em marcação rápida, o único que sabia de cor. Depois ouviu, atento, a história incrível de como tinha um meio irmão, não um irmão, só meio, assim o consagrava a lei portuguesa, por ser filho da mãe. Laura tinha sempre mais uma surpresa. Explicou a Paulo que tinha estado com Martim, um acaso e como se sentia enjoado, pronto para vomitar. Eram quase duas da manhã. Paulo pediu-lhe calma. Jaime quis saber onde estava.
Em casa dos pais da Carmen, com a mãe.
E a Carmen está aí? Vais ficar aí a dormir?
Paulo olhou para o lado, viu o rosto imperturbável da ex namorada do irmão a dormitar no sofá da grande sala de estar.
Laura manteve-se na cozinha, numa semi escuridão protectora que lhe agradava especialmente. Maria Luísa tomara um comprimido desfeito no chá e Carlos alegava que era imperativo conversar. Conversar longe dela, a sua mulher, a amiga de infância de Laura, um mecanismo de papel na mão com flores e casinhas.
Quantos queres?
Três.
Eram pedaços de vida que lhe surgiam, de forma inesperada, e Laura procurava algum consolo nisso, no passado. O passado como moldura de uma certa felicidade, pelo menos até ao momento em que Carlos a tinha beijado para depois a repudiar e regressar para Maria Luísa. Ela, Laura, era um desperdício e a ideia do amor fora consumada num filho que não conhecia. Os seus três maridos, relações tensas com homens com quem não mantinha contacto, não tinham tido qualquer hipótese, ela estava marcada por Carlos e por Maria Luísa, eram eles o fiel da balança dela e, sozinha, só chegava a um limiar de desequilíbrio que era permanente, era assustador.
Não era de admirar que tivesse falhado com os filhos, em especial com o primeiro, o desconhecido. Carlos fez questão de dizer que Maria Luísa tinha em Martim um centro, dedicara-se a ele com o afinco proporcional de negligência face a Carmen. Laura não se consolou com o argumento. Algo dentro dela, perturbada, zangava-se com a importância que Carlos estava a conferir à criança que tinham tido os dois. Para Laura existiam dois filhos: Paulo e Jaime. Era o que sentia e sobre isso falou com alguma brutalidade. Sobre isso e a ideia de que estava a perder a noção das coisas, esquecia-se de tudo.
Preciso que tomem conta de mim. O meu pai morreu com isto, lembras-te?
Carlos lembrava-se. O pai de Laura tinha-se desligado do mundo gradualmente. Quando chegou o dia do coração parar de bater violento, já não conhecia ninguém. A mãe de Laura despedira-se do marido sem uma lágrima, cansada. Partira nesse dia da realidade e, meses mais tarde, deixara-se morrer. Laura não falava sobre isso, nunca falara aos filhos sobre os avós, por se ter convencido que não prestavam, que não se tinham dedicado a ela. Laura optara por viver nas entrelinhas da vida de Maria Luísa por não ter um espaço que fosse possível reclamar como seu. Agora percebia que estava a chegar ao mesmo estado do pai. A cabeça começava a apagar pormenores, como pixels de uma fotografia, a realidade a desbotar, roupa suja e velha, era ela, a cabeça dela.
Carmen acordou com frio, o corpo no sofá, as pernas em cima do colo de Paulo que, de olhos fechados, não lhe parecia adormecido. A casa estava calada. A mãe tinha-se fechado no quarto e, por fim, a paisagem era segura. Olhou para o irmão do ex namorado com ternura. Havia entre eles uma ligação, não por causa de Jaime, mas por causa de Laura, a mulher que afinal podia ser que tivesse o coração de Carlos, o seu pai. Sentiu-se pronta para conversar sobre o assunto e começou a falar como se nada fosse, sem princípio.
Mas tu achas que podemos viver todos como uma família feliz? Isto é inesperado, não achas? Nunca pensei que o meu pai... Olha, talvez seja o destino.
O destino?
Sim, sermos uns dos outros.
Paulo perturbou-se com essa ideia. Depois Carmen sentou-se e sorriu. Pensou como seria beijá-la.
Martim mandou uma mensagem escrita a Carlota. Eram sete da tarde e, subitamente, era com ela que queria estar. Podia ter sido directo e perguntar se queria passar lá em casa, ficando evidente o propósito da mensagem. Martim, com o seu ego tão mexido quanto todas as outras vaidades, não se preocupou com o episódio no restaurante. Carlota já não se lembraria. Não fora uma afronta, estava a trabalhar. Era só isso. A vida não precisava de mais complicações. Martim decidia que tudo era passível de ser entendido dentro da moldura das suas ideias e isso chegava. Carlota, por seu turno, mantinha uma memória doce da noite que passara com o irmão da amiga, apesar dos avisos desta, das previsões catastrofistas. Leu a mensagem de Martim e percebeu a pergunta. Sim, ela queria voltar para a cama dele. Estava-se bem na cama dela.
Laura fez sinal ao filho mais velho, a cabeça na direcção do jardim, o olhar fixo. Paulo percebeu que era melhor segui-la. Seria possível fazer as perguntas que se acumulavam desde a noite anterior? Laura disse:
Tu não vais entender, Paulo.
Experimenta.
Morrer é fácil, perder a consciência não é fácil. Eu estou a perder a memória. Perco-me.
Não estás a exagerar?
Não viste os bilhetes pela casa? É uma forma de me tentar lembrar. Até de dar de comer aos gatos. Não consigo.
E vieste para aqui porquê?
Eles devem-me isso. Têm de tomar conta de mim.
Porque? Que disparate é esse?
Laura suspirou. Não era um acaso, não era um capricho. Se alguma existira uma dimensão de delírio na sua vida tinha sido há muito tempo, há mais de vinte cinco anos, aquela gravidez inesperada, o casamento apressado de Carlos e Maria Luísa. Tentou enquadrar o filho, explicar de forma sucinta, não se queria alongar. Paulo não lhe deu hipótese.
Se queres a minha ajuda, por favor, conta-me tudo.
Laura não sabia se era preciso precisar do filho. Quando era mais nova, admitia-o com facilidade, imaginava por vezes que os filhos desapareciam. Não morriam, ficavam apenas suspensos na sua existência para que a vida não lhe fosse tão pesada, para conseguir sair com os amigos, para rir às gargalhadas pela madrugada sem preocupações com horas de escola, com comida a existir no frigorífico ou nem por isso. Depois lembrava-se deles, os rostos de Jaime e Paulo, o coração encolhia e o arrependimento era gigante. Amava os filhos. Amava-os animalmente.
Laura explicou que a gravidez fora um percalço, tudo era um acidente absurdo numa via rápida sem fiscalização ou regras. A vida também era isso. Sabia hoje que era apenas uma variável na equação e pouco importava querer controlar tudo, o mundo era impossível de dor e a verdade tinha sempre dor por dentro, dor sistemática. Paulo ouviu-a no seu desvio, pensamentos soltos, ela a encarar a relva debaixo dos pés, sentada com um sossego que não lhe conhecia. A mãe tinha-se transmutado numa outra pessoa. Paulo só lhe reconhecia a vertente estrangeira, era ela e, ao mesmo tempo, era uma Laura de outro tempo em que a vida parecia ter possibilidades de sucesso. Ela contou sem mudar o tom de voz, sem hesitações, as palavras contidas. Maria Luísa deixara o namorado, Carlos, pai de Carmen e de Martim, e tinha-se encantado com alguém mais velho que a deixara com uma rapidez assustadora. Laura tinha recolhido o coração partido de Carlos, era um resto de Maria Luísa e pareceu-lhe natural tentar aplacar o seu sofrimento. Mas nada seria tão simples. Abandonada, zangada, Maria Luísa reclamou o regresso de Carlos e marcou um casamento rápido para que não fosse possível recordar que se tinha entregue a um homem que a deixara, um homem que afinal não era superior a Carlos. Laura deixou-o ir. Paulo não fez um esforço para compreender.
Entretanto, em Lisboa, Martim descobria o humor negro de Carlota. Ela faz-se difícil. Menos amorosa do que pretende, do que seria normal. Se não lhe der importância, Martim não terá a leviandade de a menorizar. Se parecer distante, ele irá atrás dela. É um jogo. Não quer que Martim perceba que só a sua mão na dela, esse primeiro toque ligeiro, ainda sem atrevimento, a desmorona. Perde o céu quando o sente perto. Isso não se pode vislumbrar. Em nenhum gesto, em nenhuma palavra. Carlota acredita que será assim. Quando o telemóvel toca é Jaime do outro lado que, num fio de voz, deixa uma mensagem esquisita. Carlota não quer saber. Martim vai acabar enfeitiçado por ela. Nem que seja preciso. Qualquer coisa.
Laura e Paulo foram interrompidos por Carlos. Era um momento confuso, silencioso e pesado. Não havia palavras suficientes, pensou Paulo, calado, apostado em não dizer nada. Nada o preparara para as loucuras da mãe, nem para o passado, cada dia com ela fora sempre um exercício penoso que ele, Paulo, escolhera tomar para si como um sacrifício em prol do irmão. Agora a mãe dizia-lhe que estava a perder a memória, que esse gastar das ideias e a incapacidade de fixar pormenores era real, não uma mera fantasia, que podia até possuir contornos genéticos, afinal, o avô que Paulo não conhecera deixara de ser gente assim, perdendo as ideias. Paulo lembrou-se de Jaime a dizer, há muitos anos, que o irmão estudava para ser médico das ideias.
Podia ser que Carlos tivesse mais esclarecimentos, decerto que haveria uma versão só sua e Paulo sabia como uma mulher pode ser castigadora, limitativa e outras coisas, ora Carlos estava ladeado por duas mulheres e nenhuma fácil na sua forma de existir. Paulo decidiu ali que não gostava de Maria Luísa e que não teria pudor em confessá-lo. Havia algo de perverso naquela mulher e, ele, mesmo no seu melhor feitio, na contenção de quem estudou para ser imparcial nas coisas no emocional, estava do lado oposto ao de Maria Luísa. Não gostava dela. Por entender o poder que tinha sobre a mãe dele e sobre aquele homem gentil, que lhe parecia gentil, agora a fumar um cigarro e a olhar o jardim com tristeza, uma tristeza velha.
Carmen decidiu que era hora de regressar a Lisboa, estava cansada do teatro trágico-cómico da família e agora que se sabia irmã adoptiva de um irmão que nunca gostara, Martim, preferia seguir com a vida. Apesar da ideia absurda que Paulo era uma possibilidade, depois de tudo o que chorara por Jaime, o coração partido e os insultos repetidos como uma lengalenga, Carmen só queria voltar à universidade, assistir o professor sem mérito mas com cátedra e pouco mais. Não valia a pena tentar entender os pais e, por outro lado, era incapaz de processar toda a estranheza de Laura. Não era de admirar que Jaime tivesse tanta deficiência emocional, afinal a mãe dele era um destroço de um navio sem rumo. Parecia-lhe que sempre fora assim e teve pena de Jaime. Depois de Paulo. Procurou-o com o olhar e lá estava ele no jardim, em silêncio, a cara fechada, a fingir-se adulto entre Laura e Carlos, duas criaturas presas na mitologia de uma idade adulto com mais de vinte anos.
Jaime estava aborrecido, ligou a Martim. Não sabia o motivo desse gesto precipitado, um convite para uma bebida e estavam a conversar, meias palavras, conversa sem importância, quando ouviu a voz de Carlota e perguntou:
Estás com a Carlota?
Estou. Vamos tomar um copo os três.
Ok.
Conduzindo agora sem vontade, antevia uma noite de copos frustrante e não entendia a razão pela qual tinha telefonado, a razão que o levara a sugerir um encontro que não fosse um exercício típico de homens que não têm mais nada para fazer. Tinha o que fazer. Podia olhar para Carlota. Ver-lhe os lábios a abrir e fechar e prender-se nisso, sem ter em conta qualquer outra coisa. O que Jaime queria era entender o que fazia a caminho daquele encontro e por que carga de água é que Paulo não lhe respondia às mensagens.
Carlota viu-o primeiro. Jaime estava ao fundo do bar, numa mesa encostada à janela, fumava um cigarro e, como todos os solitários, brincava com qualquer coisa no telemóvel ou via notícias. Lembrou-se que Carmen tinha o hábito de jogar majong no telemóvel, peças que procuravam o seu companheiro, Carlota nunca entendera. Agora era tempo para sorrir e, pendurada em Martim, fazer-se entender com Jaime de uma forma amigável, porque, quem sabe?, podiam todos ser amigos. Uma coisa era certa, não tencionava olhar para Jaime com qualquer nota de interesse. Estava, aliás, ofendida com o interesse súbito, que lhe pareceu ser súbito, com que Martim encarava a hipótese de se encontrarem com Jaime.