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Delito de Opinião

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 10.02.16

 

Quando o inesperado acontece; Laura abandona a cidade; Martim ignora Carlota; Carlota deixa que a emoção domine; Carlota deixa que a emoção domine

 

O silêncio não tinha uma dimensão possível de se medir. O tempo congelou. Ouviu-o respirar do outro lado da linha, porventura um suspiro, a noção exacta do disparate cometido. Carmen precipitou-se de forma juvenil

Olá, estás bem?

Não. Não estou.

Posso ajudar?

Ninguém pode.

Jaime, estás muito dramático, diz lá o que se passa.

Não tenho ninguém com quem falar.

Tens o teu irmão, o Paulo.

Saíste com ele.

Sim.

Foi bom?

Sim.

Jaime esperava outro tipo de resposta. Levantou-se e observou a vista hedionda que a cidade tinha naquele ângulo, apenas um espelhar da sua perturbação, cores esbatidas, lixo, contentores.

Ao mesmo tempo, Laura, do outro lado, apanhava um táxi e seguia para o comboio Mandou uma sms ao filho mais velho. Paulo iria perceber que ela levantara dinheiro na caixa automática, que abandonara a casa. Era um polícia da sua vida. Da pior forma, mas era. A mensagem dizia

Vou passar uns dias a Coimbra. Não te preocupes, tenho lá amigos. Diz ao teu irmão que está tudo bem. Não te zangues, Paulo.

Carlota não entendeu a seriedade do cumprimento, formal, quase gélido. Teria Carlota dito alguma coisa? Não, não podia ser. Martim olhou-a, quase indiferente, para surpresa dela, e cumprimentou-a com um ligeiro aceno de cabeça. Não se levantou, não lhe dispensou três segundos, continuou a falar com o seu interlocutor, um homem de fato que comia uma enorme posta de bacalhau. Martim estava a trabalhar. Carlota não era trabalho. A indelicadeza, contudo, magoou-a, ela que ainda sentia na pele a ponta dos dedos dele naquela noite de impulsos e pouca razão.

Não sabe o que lhe passou pela cabeça, tinha-se como uma pessoa capaz de se controlar, até mesmo controlada, se fosse sincera consigo própria. Atravessou a sala do restaurante como se fosse uma passarelle, muito direita, elegante nos seus saltos altos e parou junto de Martim.

Não me falas ao almoço? Só de noite?

Carlota... eu...

Deixa estar, Martim, a tua irmã explicou-me tudo. Ou quase tudo.

O momento de glória seria o segundo em que voltaria as costas. Porque seria então que se sentia tão frágil, os olhos a reclamar lágrimas. Estava demasiado sensível, nem parecia ela. Carlota saiu do restaurante. Já não conseguia almoçar.

Martim não percebeu a ousadia ou o gesto de confronto de Carlota como uma chamada de atenção, apenas como um incómodo. O que o perturbou foi a menção a Carmen, a irmã tão certinha, tão cheia de sabedoria, afinal uma professora assistente na universidade. Nunca entendera irmã. Talvez por não ser sua irmã. Criaturas de ventre distinto.