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Delito de Opinião

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 25.11.15

Onde se esconde a dor; o caminho é desconhecido; o outro irmão também é central; não gostar é uma imposição; a mãezinha entra ao barulho; há uma liga de mães;

 

O olhar dela seria inesquecível se Jaime fosse esse tipo de homem. Não era. A insensibilidade podia ser uma acusação demasiado leviana, excessiva. Ele era comedido e tinha aprendido a isolar os episódios da vida, obrigara-se a uma memória selectiva. Não queria recordar os olhares de Carmen na dor, da mesma forma que não queria saber de certas coisas da mãe. Ou de Paulo.

Paulo deixou-se guiar pela cidade. Pouco importava onde fossem tomar o tal copo, não tinha nada para dizer a Carmen, porém estava satisfeito por estar ali. Sendo uma sensação quase inexplicável, era o caso: satisfeito. Odiava festas, não entendia a razão pela qual a Carlota estava tão desvanecida com o outro tipo, o tal de Martim, e foi isso que disse

 

Quem era aquele tipo? Armado aos cágados...

 

É o meu irmão.

 

Ah, desculpa.

 

Não peças. Se ele fosse só um homem com manias era mais simples, mas não é. É maquiavélico.

 

Como assim?

 

Paulo podia mostrar-se interessado, afinal era uma das suas técnicas de eleição, essencial para a sua vida profissional. Carmen não se fez rogada e, enquanto acelerava pela avenida mais larga de Lisboa, contou o que lhe ocorreu sobre Martim.

 

Podia ser boa pessoa. Nunca foi. Mesmo em pequeno sempre foi mau.

 

E Paulo ouviu, com mais atenção do que seria de esperar, os pequenos dramas da família de Carmen. O amor pela avó, a incompreensão da mãe, a rigidez do pai, o facto de Martim ter escapado a todas as ameaças paternas, castigos e rupturas.

 

Ele faz o que quer e, porque o mundo não é justo, tem sucesso. É um filho da puta com sucesso.

 

Não gostas mesmo do teu irmão.

 

Paulo, não gosto do meu irmão, já não gosto do teu irmão e também não gosto de ti.

 

Paulo sorriu. Carmen tinha qualquer coisa. Não era só a miúda da província com meia dúzia de traumas familiares, com necessidade de vingar para estar no jogo de competição com Martim, o irmão. Ela negaria. A vida não é um jogo, diziam-lhe os seus pacientes. Paulo estava convicto do contrário desde sempre. Culpa de quem? De Laura, é evidente, a mãe seria sempre o começo de tudo. Para Carmen, a mãe não parecia ser um problema e, por isso, perguntou

 

E da tua mãe, gostas?

 

Carmen olhou-o de lado, um nano segundo, sempre concentrada na estrada. Se amava a mãe? Se gostava dela? Se a admirava? Decidiu responder com honestidade

 

Respeito a minha mãe. É tudo o que posso fazer.

 

Respeitar já é muito.

 

Achas? Não sei, Paulo. A vossa mãe pertence a uma liga diferente da minha. Acredita no que te digo.

 

Não tenho a menor dúvida.