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Delito de Opinião

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 17.11.15

Onde, de repente, Carlota se vê a receber um Oscar;  o filme continua; a festa também se faz com silêncios; o ódio é garantido; há impossíveis; o ódio é um espanto; gostar de alguém não tem relevância; um ritual aniquila uma mulher; esconde-se a dor; ser-se boa na cama não chega

 

Carlota cumprimentou Paulo com pouco à-vontade. Gostaria que desaparecessem, ele e a Carlota, tão idiotamente serena. Preferia não ver o Jaime, ficar ali com o Martim e perceber que a vida podia ser mais parecida com um automóvel de corrida. A metáfora era apropriada. Martim tinha esse jeito de carro desportivo. Rápido, dinâmico, bom design, solidez e modernidade. Uma cambada de clichés, é certo, porém Carlota estava como que presa a tudo aquilo e, se de repente, ele tivesse uma arma e começasse aos tiros para a salvar, seria apenas mais uma banalidade.

 

Martim, por seu turno, ciente de ter um palco só para si, um palco limpo de histórias para trás -  Carlota nem fazia ideia que era irmão de Carmen -, sentia-se a tecer as malhas da sedução com eficácia. Era o tipo de homem que conseguia perceber o efeito que tinha nas pessoas. Algumas mulheres eram imunes ao seu charme, em especial as mais pragmáticas. Carlota queria viver uma aventura com uma dose de perigo e, talvez por isso, ignorou a irmã e o cavalheiro ao seu lado, pegou na mão da sua donzela resgatada e encaminhou-se para as casas de banho. Carlota deixou-se levar e Carmen ficou a ver.

 

O silêncio entre eles tinha mais impacto do que o som alto do hip-hop. Como se Carmen e Paulo estivessem num casulo. Jaime não iria aparecer, disso tinha ela a certeza. Vira-o, encara-o com a calma de desafio ganho e ele esfumara-se entre os que dançavam e os outros que tentavam falar e, por isso, eram obrigados a gritar. Olhou para Paulo na certeza de compreender na totalidade o seu desconforto.

 

Carmen disse:

 

E se fossemos beber um copo a outro sítio?

Nós?

Sim. O teu irmão não vai aparecer.

E tu queres ir beber um copo comigo?

Sim. Não gostas de mim. Eu não gosto de ti. Não há perigo.

 

Paulo riu. Não conseguiu evitar. Carmen estava já de pé e mostrava as chaves do carro.  

 

Jaime saíra da festa há algum tempo. Tinha ficado sentado dentro do carro a ver as pessoas a circular. Gostaria de ter festejado mais o facto espantoso de ter sido promovido. Sentia-se menos mal por ter falado com os seus colegas e patrões, logo no início. Mostrara a cara, era a conclusão. O divertimento que se prometera falhara ao ver Carmen com o irmão. A vida não seria nunca uma dedução óbvia. Devia ter estado mais atento às aulas de lógica? Pensava nisto, sem grande ordem, quando viu o corpo do irmão entrar dentro de um carro que conhecia de sobremaneira. Não havia impossíveis e Jaime acabara de testemunhar um impossível. Estava escrito.

 

Paulo odiava Carmen. Chegara a descrevê-la como alguém que, sendo da província e de boas famílias, podia ter nascido num país de Leste. Lembrava-se perfeitamente, o irmão dissera que Carmen tinha aquele ar de enfado e, ao mesmo tempo, de mistério, sempre carregando uma grande tragédia. Jaime gozara-o, como se as tragédias fossem apenas histórias terríveis com origem em países de leste e depois acrescentara uma estupidez

 

Ela nem é loira.

 

Não, Carmen não era loira, nunca fora loira. Podia envelhecer e começar a pintar o cabelo, primeiro de ruivo e depois de loiro, para parecer mais nova. Acontecia a muitas mulheres. Jaime repreendeu-se mentalmente, a sua cabeça desviava-se do assunto, da importância maior de ter visto Paulo entrar no carro de Carmen. A ex namorada tinha coleccionado, sem o saber, um conjunto apreciável de adjectivos qualificativos vários. Paulo era hostil, implacável.

 

Ela é um professoreca. Uma assistente, aliás. Não tem conversa. Ainda fala em Coimbra como se Coimbra fosse um lugar feliz. Olha, Jaime, desculpa, mas para namorada é um desastre.

 

Ninguém diria que és psicólogo.

 

Pois, Jaime, no que te diz respeito tenho o consultório fechado. E para a tua namorada mais ainda.

 

Não gostas dela.

 

Não.

 

OK.

 

Tinham deixado a coisa nesse pé e, às quartas-feiras, jantavam os dois, como se o ritual, sem Carmen, fosse o garante de uma certa normalidade. O ritual era ainda uma desvalorização do papel da mulher com quem Jaime dormia. Uma mulher que ele sabia estar num fio qualquer de destruição. Não foi preciso ninguém dizer-lhe que Carmen era auto destrutiva, a sua mãe era assim, ninguém melhor do que ele para entender o estrago emocional de uma mulher. Não sentia compaixão por Carmen; não a sentia pela mãe, Laura, tão-pouco por ele próprio ou por Paulo.

 

Jaime tentava encaixar a namorada na lista de afazeres e estava convicto de que tudo fluiria se tivessem muitas coisas para fazer, muitas ilusões colectivas, festas e jantares, nada de importante. Alimentou a situação o quanto lhe foi possível. O mais possível. Gostava de Carmen. Gostava dela na cama e isso não podia dizer em alta voz. Embora, se a memória não lhe falhava, o tenha dito na despedida

 

Só és boa na cama.

 

O olhar dela seria inesquecível se Jaime fosse esse tipo de homem. Não era. A insensibilidade podia ser uma acusação demasiado leviana, excessiva. Ele era comedido e tinha aprendido a isolar os episódios da vida, obrigara-se a uma memória selectiva. Não queria recordar os olhares de Carmen na dor, da mesma forma que não queria saber de certas coisas da mãe. Ou de Paulo.