Fictiongram, continuação da continuação
onde o mundo de Paulo não gira, o silêncio e a imaginação não se controlam, a possibilidade da festa esmaga, uma mulher também pode ser uma desculpa, a mãe é motivo de discórdia, o caminho da festa é não é um vestido vermelho
Paulo mantinha um consultório com alguma facilidade. Já trabalhava há anos suficientes para saber como manter uma clientela. O que contava era o boca à orelha, portanto o profissionalismo importava, a par da empatia. Paulo, sempre tão fechado, era profundamente carismático na sua reserva e, por qualquer razão insuspeita, os doentes não sentiam nenhum constrangimento, podia dizer tudo, Paulo estava lá para eles, atento, capaz de fazer prosseguir as sucessivas narrativas de vida. Pouco falava, ou melhor, falava o estritamente necessário, mas a maioria dos seus doentes não o entendia assim. Paulo era o equivalente a um estado de conforto.
Não havia no consultório nada que o identificasse, nem os seus gostos, nem a sua família. Havia doentes que interpelavam a assistente:
O senhor doutor é casado?
Não, minha senhora.
Ah... que estranho.
Estranho, minha senhora?
Um desperdício. Um homem tão bonito.
Paulo ignorava estás conversas. Podia imaginá-las, porém fazia todos os possíveis para não imaginar nada.
Paulo não queria ir à festa. Preferia estar com Jaime numa outra ocasião, mas era impossível recusar, inventar uma desculpa. A festa era importante para Jaime. Tratava-se de reconhecer o seu lugar na empresa, a sua ascensão. Seria um evento cheio de pequenos pormenores, pessoas da moda, tutti quanti, um disparate de álcool e de fotografias, falar-se-ia de tudo e, em especial, seria um antro de maledicência. Paulo conseguia antever tudo, só não esperava receber uma sms do irmão para o informar que Carlota também estaria presente.
Carmen. Paulo recordou com precisão todos os traços da amiga de Carlota. Uma vez, há muitos meses, Jaime mostrara-lhe uma fotografia e ele, ingénuo, delicado, de forma impensada, dissera:
Parece-me uma mulher interessante.
Agora, Jaime levava-lhe a mulher interessante para conhecer na festa onde não queria ir. Era uma maneira, a maneira de Jaime, de pedir desculpa.
Tinham trocado palavras desagradáveis. Nenhum se lembrava porquê, do início de tudo. Era um jantar normal, o das quartas-feiras, Jaime parecia recuperar da separação de Carmen. Paulo estava ocupado com um seminário que daria em formação para o luto em famílias com doentes oncológicos. Não tinham falado muito e, de repente, estavam a trocar aquelas palavras.
A mãe não é um problema.
Estás a brincar, Paulo?
A mãe sempre foi assim.
Tu não estás a perceber, a mãe não se lembra da maioria das coisas.
Isso é cansaço.
Paulo, não é cansaço.
Caramba, pára com isso. A mãe está óptima e não entendo a tua preocupação, nunca a vais ver, não queres saber, eu trato de tudo.
Jaime levantou-se sem ruído e, ofendido, saiu do restaurante. Nunca se tinham chateado antes. Os irmãos.
Carlota experimentava um vestido vermelho com uma racha do lado direito. Era um vestido de marca, porventura demasiado comprido. Era bonito. Custara uma pequena fortuna e ela nunca encontrara a ocasião certa para o vestir. Ao espelho, descalça, o vestido a colar-se à pele, apanhou o cabelo num gesto que era apenas uma experiência. O vermelho ofendeu-a. Despiu-se.