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Delito de Opinião

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 15.09.15

onde o amor é nómada

Jaime e Paulo. A mãe espalhava as fotografias dos filhos pelas divisões todas. Nasciam nas casas onde moravam. Mudavam-se muitas vezes a pretexto de uma renda mais barata, do desejo de ter um espaço maior, uma varanda, uma determinada vista para o rio, do pouco dinheiro que existia na carteira de Laura. Os miúdos não se queixavam, eram nómadas mas tinham amor; eram diferentes, mas tinham amor; eram desregulados nos horários, mas tinham amor. Tudo se complicou quando Paulo foi para a escola primária. Laura, a mãe, era incapaz de o entregar a horas. Jaime chorava o dia inteiro.


onde a mãe é diferente das outras

A mãe dizia

 

Não chores, não chores.

 

Jaime sentia a falta do irmão. Deixou de falar. Paulo diria, muito mais tarde, que era um cenário “clássico” de abandono. Laura podia ser diferente de todas as outras mães, podia ser “saliente” – assim a designara a directora da escola -, porém era solidária. Durante meses, para que Jaime não chorasse tanto, Laura ficava à porta da escola com ele. Sentavam-se debaixo da árvore gigante que, reflexiva, deixava a sombra a protegê-los até às quatro da tarde. Paulo saía a correr, a bata cor de laranja cheia de nódoas. Jaime levantava-se e o abraço era imenso, não tinha fim. Era mais do que irmãos, eram protectores de Laura. Do céu que tinham em cima da cabeça.  

 
onde a cumplicidade dos irmãos assusta

Carlota não sabia nada da história aflita dos irmãos pequenos. Carmen suspeitara. Durante o tempo em que namorara com Jaime, via-o a falar com o irmão ao telemóvel. Várias vezes por dia. Eles tinham silêncios que eram momentos de cumplicidade que ela, a namorada, não entendia. Depois havia as brincadeiras que eram só deles e um jantar, matemático, infalível, às quartas-feiras, que não permitia qualquer intruso. Carmen contara a Carlota

 

Jantam. Até podem ver um jogo de futebol no restaurante e não dizer nada, mas jantam. Toda as quartas-feiras. É muito irritante.

Eu acho querido.

Pois.


onde a mãe se tenta organizar

Quando Jaime chegou aos dezasseis anos, Laura acabara de fazer trinta e três anos. Mantinha o mesmo emprego há meses. Uma novidade. Gostava de trabalhar no café, era uma estrutura de madeira com vista para o Tejo, uma pequena zona com livros e almoços tardios aos domingos. Laura sorria e bailava entre os pedidos, de mesa em mesa, como se fosse o seu destino dizer coisas como

 

O sumo do dia é maçã​e laranja.

 

A festa de Jaime foi no café onde a mãe trabalhava. O actual​ marido era dono do estabelecimento e estendeu-lhe a mão.

 

Parabéns, miúdo.

 

onde a coisa não se dá

Paulo detestava este terceiro marido. Nunca diziam o seu nome. Era “o tipo”. Com uma bolsa de estudo, na Faculdade, o irmão de Jaime optou por sair de casa e fez um ultimato à mãe

 

Vou levar o Jaime. Tu não tens condições.

Não vais nada.

Vou, mãe, é melhor.

Paulo...

Assim a coisa não dá, percebes? É melhor para ele.

 

Saíram os dois, um no liceu, outro na faculdade. Os jantares eram feitos com latas de atum e salsichas. Jaime dava explicações. O dinheiro era inexistente. Viviam num quarto de estudante. Na Faculdade, Paulo era considerado um aluno brilhante ​em Coimbra. Ninguém sabia que com ele vivia o irmão que gostava de ver as estrelas deitado no alcatrão.   

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