Extremismos
Nas últimas noites, o bairro de Gràcia, em Barcelona, esteve a ferro e fogo. Um grupo de okupas tomou as ruas de assalto, deixando um rasto de destruição e os moradores aterrorizados. Montras de lojas e de sucursais bancárias, supermercados, contentores do lixo, scooters, carros, nada escapou à fúria. A presença de jornalistas em directo do local, também insultados e agredidos, permitiu ouvir as vozes de protesto. “A polícia é terrorista” é das poucas frases que posso reproduzir aqui. O vocabulário era desinibido e pouco exemplar.
A razão para tanta destruição, perdão, indignação é inaudita: deixaram de lhes pagar a renda. É verdade, eu também sou do tempo em que os okupas eram uns tipos destemidos que ocupavam imóveis contra a vontade do proprietário, contra as normas da lei, contra as decisões judiciais e contra a polícia. Enfim, sou do tempo em que usar bens pagos era, para os okupas, um vício burguês, uma contradição nos termos. Ser okupa num imóvel que alguém paga era como ser partidário da castidade e decidir viver num prostíbulo.
Os antecedentes desta história contam-se em três penadas. O imóvel, uma antiga dependência bancária, foi ocupado em 2011. Dois anos mais tarde, o proprietário, a Catalunya Caixa, fez chegar aos okupas a ordem de despejo. Os okupas protestaram para reivindicar o seu direito a um tecto e a uma vida digna, ou seja, saíram à rua para destruir propriedade pública e privada, para além de expiar frustrações na polícia. Perante a violência e o desrespeito pela lei, o então presidente da câmara municipal de Barcelona, Xavier Trias, decidiu que era chegado o momento de tomar uma decisão. Levantou a cabeça, encheu-se de coragem, assumiu os poderes públicos nele investidos e começou a pagar-lhes a renda. Aqui chegados, não sei se me devo revoltar com os okupas ou se devo aplaudi-los. O município de Barcelona passou então a desembolsar 5.500 € com cadência mensal. O maquiavelismo primário (e alguma benevolência com Trias) poderia ver nesta decisão do Executivo municipal uma estratégia audaz para subverter a identidade okupa. Acontece que a ideologia e os valores okupas são abnegados e irrenunciáveis, mas não há ideias no mundo que se comparem ao conforto de uma casa paga por terceiros.
Por razões que os okupas não entendem, a actual presidente de câmara, Alda Colau, considera que a renda de 5.500€ é danosa para o erário público. Por isso, mandou cancelar a transferência mensal. Note-se que não é uma posição de força. A alcaldesa de Barcelona, eleita por uma plataforma local do partido Podemos, distancia-se da violência, mas diz compreender os “manifestantes”.
E aqui termina a história, certo? Errado. A CUP (Candidatura d’Unitat Popular), partido anti-sistema de esquerda radical que sustenta o Executivo camarário, é um forte apoiante da causa okupa e, perante a decisão de Colau, vai dizendo entre dentes que o governo municipal pode cair. Abreviando, Barcelona pode ficar sem Executivo municipal porque um grupo de okupas exige que lhes paguem a renda. Mas ainda bem que a Áustria não elegeu um perigoso extremista.