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Delito de Opinião

Eu, refugiado

Rui Rocha, 10.09.15

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Foi há quarenta anos. Não me lembro de tudo. E não sei se me lembro de memória minha, ou se são imagens construídas sobre histórias que fui ouvindo. Lembro-me (ou contaram-me?) das ventoinhas nos tectos, dos flamingos, dos mosquiteiros, das noites quentes na Restinga com frascos cheios de pão que serviam de engodo para os peixes. Lembro-mo do nome do Calita, amigo de brincadeiras, mas não me lembro da cara dele. Lembro-me do meu cavalo de pau numa varanda porque ainda tenho ali uma fotografia que confirma que o tive. Lembro-me, e disso lembro-me, num lampejo, de subir a Colina da Saudade ao fim da tarde, na Opel, com o meu pai, para irmos buscar a minha mãe ao Liceu onde ensinava. Não me lembro se depois fomos ao Kurika da Etelvina e do Santos, que mais tarde tiveram a Residencial Paradouro na Almirante Reis em Lisboa, comer o meu bife: Etelva, quero o meu bife. Mas é provável que tenhamos ido, como íamos tantas vezes. E lembro-me, ai como me lembro, de ter dores de barriga e de pedir à minha mãe para me levar ao Pinto Coelho, o médico do Lobito. E lembro-me de uma viagem pela estrada do Kubal em que vimos os Xinganges. E do Carnaval em que as lavadeiras me arrancaram dos braços desconfiados da minha mãe para dançaram comigo. Lembro-me de nomes mas já não sei o que tinham dentro deles: o Hotel Terminus, a Catumbela. E Benguela onde o avô Rocha tivera a recauchutagem e onde morava o Oliveira Makeiro. Mas já não sei se era o Oliveira Makeiro que andava na rua de pijama ou se era outro de que já não me lembro. Lembro-me que o tio Fernando e a tia Lina ainda ficaram. Que vieram umas semanas mais tarde. Que a Carina, que a tia Lina carregava então na barriga, nasceu ainda lá e ficou deficiente profunda por falta de assistência no parto. Lembro-me de ouvir contar que muitos vieram em traineras. Que outros fugiram para  a África do Sul. Que alguns partiram em paquetes. Talvez no Príncipe Perfeito que uns tempos antes o meu pai me levara a ver no Porto do Lobito. Lembro-me de ouvir o Miguel, que uma tarde me levou de bicicleta aos musseques antes de me devolver, já anoitecendo, aos braços nervosos da minha mãe, falar dos comícios do Agostinho Neto e do Savimbi. O Savimbi falava bem. Sabia várias línguas. O Agostinho Neto? Xi, Patrão, pergunta não: O Agostinho Neto estava bêbedo nos comício do Lobito, pá. Lembro-me de a minha mãe contar que uma noite, alta madrugada, se levantou para atirar pela janela fora os crachás do MPLA, da UNITA e da FNLA que o Lúcio Lara, do MPLA, uma irmã (assim se chamavam entre si os simpatizantes do Holden Roberto) e o Jonas Malheiro da Unita do Lobito me tinham dado. Tinham dito à minha mãe que as milícias de um partido e dos outros entravam pelas casas dentro e obrigavam os proprietários a engolir os crachás dos adversários. Lembro-me que eu era pelo Holden Roberto porque gostava de ouvir-lhe o nome. E que era da UNITA porque gostava de dizer kwacha e do MPLA, apesar do Agostinho Neto estar bêbedo no comício, porque o Lúcio Lara me dava crachás bonitos. Lembro-me, ou ter-me-ão contado, desse dia em que carregámos meia-dúzia de malas para o aeroporto do Lobito. Do meu pai a correr para o Dakota para nos meter lá dentro. De o ver tropeçar e cair no meio da pista e de o ver levantar-se agarrado à mão. Do barulho dos motores do Dakota já a sobrevoar o Lobito, o meu pai ao meu lado com o braço ao peito, amparado por um lenço castanho e vermelho. Do barulho das rajadas de metralhadora e dos morteiros enquanto o Dakota subia. O mesmo barulho que já tinha ouvido quando tropas portuguesas respondiam do telhado do prédio onde vivíamos às FAPLA que estavam no Terreiro do Pó. Ou será que o barulho das rajadas de metralhadora e de morteiros foi quando levantámos, dois dias depois, de Luanda? Lembro-me que o meu pai veio só para nos trazer para Portugal, mas que tinha intenção de voltar a Angola. E que nunca mais voltou. Lembro-me que o Jumbo (era um Jumbo, não era?) levantou de Luanda e uma hora depois voltou para trás por ter uma avaria. Lembro-me da cara do meu pai que sabia que em Luanda nos esperavam outra vez metralhadoras e morteiros. Lembro-me de não saber dar nome à cara do meu pai mas sei agora que era pavor. Por mim, pela minha mãe. Por ele. Lembro-me de dormir no Aeroporto de Luanda em cima de uma mala enquanto esperávamos por outro avião para a metrópole. E dos morteiros e das metralhadoras. Ou será que tinha sido no Lobito? Lembro-me de dormirmos dezenas de crianças num quarto de hotel em Lisboa no dia em que conseguimos chegar. Lembro-me que as malas se perderam. E que com elas se perdeu o pouco que ainda tínhamos. Com excepção de um frigorífico, de um bar com incrustações de madrepérola e de duas arcas em cânfora que chegaram de barco umas semanas mais tarde. O frigorífico que foi nosso ainda durante muitos anos já em Braga. E as arcas e o bar que ainda tenho lá em baixo na garagem. Lembro-me de chorar, ai como me lembro, porque numa das malas iam um casaco e umas calças, ambos de ganga, e um outro conjunto igual mas de sarja branca, de que gostava muito. Lembro-me do frio de Agosto quando saímos do nevoeiro do dia seguinte para bater à porta, sem nada nas mãos, da casa da avó Palmira em Silvalde. Lembro-me, ou foi o meu pai que me contou, do peso do falhanço que lhe vergava os ombros. Do pé atrás de muitos que nos receberam. Da desconfiança. Dos olhares contrariados. Dos sussurros sobre nós mesmo quando estávamos com família. Dos passos que se afastaram quando esperávamos, pelo menos, um sorriso. Da diferança de costumes. De não ter para onde voltar e de estar num lugar onde não nos queriam. De nos chamarem retornados e da raiva ou do desdém com que o faziam. Lembro-me que ser retornado era uma etiqueta que nos pesava. Que nos definia para lá de sermos boas ou más pessoas. Os de cá tinham uma família. Um passado. Coisas boas ou más que tinham feito. Nós não. Éramos só retornados. E de o meu pai responder sempre que não era retornado mas refugiado porque não tinha nascido . E que eu também tinha nascido . Lembro-me e não guardo rancor. Percebo os medos, os receios, as frustrações dos que já estão onde outros chegam. Da angústia da perda do pouco ou nada que se tem. Da injustiça de haver  quem passasse muito mal sem nunca ter sido ajudado e de ter de se ajudar quem chega sem ser convidado. Mas não percebo que os que estão não percebam o que é fugir da guerra, ficar sem nada, chegar de mão estendida, chegar com a vida falhada. Que não percebam as crianças. Não percebo a facilidade das soluções simples, dos discursos de trincheira. Do certo e do errado que nunca trocam de lado. Não percebo, não percebo. E não percebo porque me lembro. Ou porque me contaram coisas de que ainda me lembro.

 

* a fotografia é do Público.

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