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Delito de Opinião

Estrelas de cinema (29)

Pedro Correia, 03.04.19

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O HOMEM DO LEME

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Num tempo tão propício a etiquetas, Vice – retrato muito peculiar do antigo vice-presidente norte-americano Dick Cheney – surge como uma das melhores surpresas da corrente temporada cinematográfica. Precisamente por não se inserir em qualquer padrão de narrativa dominante nem nos apresentar o biografado em forma alternada de panegírico ou panfleto, como se tornou moeda corrente.

Ninguém imagina ser tarefa fácil retratar em longa-metragem um político ainda vivo (Cheney tem 78 anos), nas suas luzes e sombras, a partir de uma juventude de medíocre errância no Wyoming, e apresentá-lo ao mundo como fruto da ambição desmedida da mulher como quem casou. Se uma carreira política é sempre fruto das circunstâncias, raras decorrem com tão pouco empenho natural do protagonista. Cheney, no início, não ambicionava ser mais do que um americano igual a milhões de outros, com um emprego mediano e pândegas bem regadas aos fins de semana.  

Moldado por Lynne, Dick eleva-se no mundo empresarial e nos corredores da política mesmo sem capacidade oratória, sem carisma, sem mundivisão. Bastou-lhe integrar uma rede com influência em Washington e subir degrau a degrau, até ascender a braço direito de George W. Bush na atribulada corrida à Casa Branca de 2001. O ano em que o mundo mudaria em escala idêntica à de 1918 ou 1989. O primeiro ano deste nosso tenso, turbulento e atroador século XXI.

 

Nos meandros do poder

 

Vice – título cuja deliberada ambiguidade subsiste apenas no original, sem possibilidade de tradução – funciona como uma visita guiada aos meandros do poder no país mais poderoso do planeta. Mostra-nos também a impotência de quem detém esse poder ao ser confrontado com situações de todo imprevisíveis, como aconteceu após os ataques terroristas a Washington e Nova Iorque. Uma espécie de montanha russa, aqui reforçada pelo argumento cheio de saltos cronológicos e pela trepidante montagem, justamente distinguida com prémios.

Mas o melhor deste filme está nas actuações. Christian Bale brilha no papel de Cheney, que o forçou a engordar 18 quilos e a sujeitar-se a longas sessões de caracterização – nos seus trejeitos, na sua voz sem modulações, na sua ambivalência enquanto conservador oriundo da América profunda que não hesita em apoiar a filha homossexual na luta contra o preconceito, no homem que pegou no leme enquanto Bush andava à deriva na sequência imediata do 11 de Setembro, no tarimbeiro dos bastidores políticos que acaba por tornar-se o vice-presidente mais poderoso de sempre nos EUA, redefinindo o conceito de inimigo externo e torcendo perigosamente o conceito de legalidade democrática.

Bale merecia o Óscar, que lhe escapou. Mas recebeu o Globo de Ouro e o Prémio da Crítica pelo melhor desempenho masculino de 2018. Digna de aplauso é também Amy Adams, no papel de Lynne Cheney, tal como a extensa galeria de secundários – com destaque para Sam Rockwell, interpretando um convincente George W. Bush. Realce também para Jesse Plemons no papel do soldado Kurt, que ao morrer prolonga a vida de Cheney, em quem o seu coração foi transplantado. Transformá-lo em narrador do filme revela um rasgo suplementar de talento.

Enfim, chamemos-lhe sátira. Que só funciona por não se levar excessivamente a sério, dispensando enjoativos sermões em louvor da correcção política. E também por servir de espelho da nossa época moldada pela globalização das redes sociais, onde o irrisório e o relevante ocupam o mesmo patamar, sem hierarquias valorativas. Algo bem demonstrado na última cena, já com o genérico final a correr, em que dois supostos membros de um grupo de análise ao próprio filme se envolvem em acalorada discussão ideológica enquanto duas colegas desse mesmo grupo suspiram pelo visionamento do próximo Velocidade Furiosa. Este é um mundo que Cheney também ajudou a criar.

 

 

Vice. Produção norte-americana (2018). De Adam McKay. Com Christian Bale, Amy Adams, Steve Carell, Sam Rockwell, Jesse Plemons. 

Duração: 132 minutos.

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