Estórias de outros mundos
O Post Magazine de ontem traz mais uma história de Craig Whitlock digna de um daqueles romances em que se misturam altas patentes militares, espionagem, mulheres bonitas, charutos, refeições de outra galáxia e negócios sob as mais diversas formas. O título dado ao artigo pelo seu autor foi o mesmo que serviu a um filme de Steven Spielberg que correu em 2015 e teve Tom Hanks como um dos seus protagonistas: Bridge of Spies.
Ao contrário do que se possa pensar, o que se relata no Post não aconteceu durante a Guerra Fria, mas muito depois do seu fim, entrando pelo século XXI e prolongando-se, ao que se sabe, por mais de uma década, de acordo com os documentos dos acusadores públicos.
Desta vez, o protagonista não é uma estrela de Holywood, mas sim um malaio, cujo avô fez fortuna com uma empresa de logística marítima no concorrido Estreito de Malaca.
Depois de uma infância atribulada, a que se seguiu o abandono pela sua própria mãe aos cuidados de um pai mulherengo, tendo ficado com a tarefa, de acordo com os registos judiciais malaios, de manter o pai debaixo de olho para garantir que aquele não levaria outras mulheres para casa, 'Fat' Leonard Francis começou a vida como empresário, aos 21 anos, num bar de Penang, onde nascera. Logo envolvido num tiroteio, do qual escapou com uma multa de USD 5800, motivando a ira dos polícias que a seguir, num episódio que pouco diferirá daquele vergonhoso por que passou aqui há uns anos Vale e Azevedo quando libertado pela PJ foi de novo detido alguns segundos volvidos, Leonard também voltou a ser preso e acusado de diversos roubos. Absolvido destes, o 'Gordo' Leonard viria a ser condenado numa pena de 18 meses de prisão e meia dúzia de chicotadas.
Este passado muito pouco recomendável não o impediu, contudo, de se tornar num importante parceiro da Marinha dos Estados Unidos da América nos negócios que envolviam as suas embarcações e as suas altas patentes, em especial após o encerramento da base de Subic Bay, nas Filipinas.
Criando uma verdadeira rede de informadores e avençados, Leonard Francis, através da sua empresa Glenn Defense Marine Group, tornou-se num imprescindível dos almirantes. Graças aos oficiais de marinha reformados e a antigas patentes malaias, tailandesas e filipinas que empregou, adquiriu o know-how e os contactos necessários que lhe permitiram instalar os seus escritórios em Singapura e ir ganhando contratos a seguir a contratos com a US Navy, em portos e locais tão distantes e diferentes como Vladivostok ou a Papua Nova-Guiné, França, México, Índia, Holanda ou em Inglaterra.
A intimidade com a oficialato estado-unidense foi tal que de cada vez que os navios da US Navy demandavam um porto, já esperavam que o "Gordo' Leonard Francis tratasse deles e organizasse um acolhimento 5 estrelas, que poderia incluir passeatas, compras, espectáculos, excursões e até limusinas para transportarem os senhores almirantes a lautos banquetes, regados a conhaque e whisky e onde não faltavam bifes de Kobe, porco ibérico e Cohibas.
O resultado dos "excepcionais" serviços prestados pelo 'Gordo' à Marinha dos EUA valeram-lhe, pelo menos, USD 35 milhões em contratos fraudulentos, subornos, facturas falsas, subcontratados inexistentes e contas de pretensas autoridades portuárias que cobravam aos navios por serviços jamais prestados.
Agora, ao contrário do que acontece noutros locais que tão bem conhecemos, está tudo no banco dos réus, num mega processo que tem mais de 200 "alvos" sob investigação e em que uma parte considerável das altas patentes da US Navy poderá sair chamuscada. As ramificações do 'Gordo' Leonard são tentaculares e cerca de trinta almirantes estão sob investigação criminal do Departamento de Estado ou sujeitos a um escrutínio ético em razão das suas ligações.
É por isso mesmo natural que alguns daqueles a quem Leonard pagou para se tornar milionário, entretanto se tenham esquecido de quem lhes proporcionou "superb services". Serviços de tão alto nível que no Natal de 2004, por exemplo, o USS Abraham Lincolm e mais três vasos de guerra foram recebidos em Hong Kong pelo "Gordo" e brindados com uma festa de Natal no fantástico Shangri-La Hotel, numa daquelas noites mágicas que quem conhece a Ásia sabe do que se trata, onde foram servidos filets mignons, lagostas, champanhe Don Pérignon e hospedeiras vestidas de Pai Natal, as "Santa Niñas". Como tudo tem um preço, no dia seguinte foi apresentada a conta da festarola do almirantado e seus subordinados: uns míseros seiscentos mil dólares.
(foto: The Star)
Pode ser que dentro de algum tempo, à medida que se for fazendo luz sobre todos os negócios de Leonard com a US Navy, alguém se lembre de levar ao cinema a sua história e de nos desvendar os segredos da Sétima Esquadra por mares da China e do Japão.
Porém, enquanto isso não acontecer nada como ler em primeira mão e sem intermediários os fascinantes parágrafos do Post.
Parágrafos que, curiosamente, me fizeram recordar uma outra vida que tive e o dia em que estando eu a exercer funções na Marinha me mandaram ir a Hong Kong, em finais da década de Oitenta, para receber, à falta de um oficial de marinha que pudesse fazê-lo, o comandante da Esquadra do Pacífico, o qual chegaria com um diplomata do Consulado dos EUA em Hong Kong. Para depois acompanhá-los até uma recepção onde eles seriam recebidos pelo seu anfitrião português, entretanto falecido. Na ocasião deram-me a recomendação de que embora fosse um civil para aqueles efeitos me deveria comportar como um militar, o que procurei fazer exemplarmente e limitando-me a responder às perguntas que me faziam, sem rede e sem qualquer experiência na matéria, no meu melhor inglês. Se fosse hoje, depois de ler o que li, não sei se não perguntaria aos fulanos, assim como quem não quer a coisa, se conheciam 'Fat' Leonard Francis. Podia ser que me dessem umas dicas.