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Delito de Opinião

Estatísticas e evolução do basquetebol

João André, 24.06.19

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Apesar de já algumas vezes ter escrito sobre desporto aqui, habitualmente debruço-me sobre futebol. O curioso é que nunca o joguei de forma oficial, apenas com amigos. O desporto que pratiquei um total de cerca de 10 anos (entre adolescência e depois a partir dos 28) foi o basquetebol. Comecei a jogar basquetebol quando a RTP começou a mostrar aos domingos alguns resumos da NBA, com o seu clipe ao som de Joe Cocker a cantar You are so beautiful e que capturava o fascínio que o desporto e a liga ofereciam. Não comecei a jogar basquetebol por causa disso. Tinha apenas, a convite de um amigo, ir experimentar um treino e fiquei agarrado.

 

Ainda hoje não sei exactamente porquê. Talvez porque eu não era grande jogador de futebol e, aos 14 anos, isso condenava-me a uma existência fora do campo ou à defesa a dar pontapés na bola "lá prá frente". O basquetebol obrigava todos os jogadores a envolverem-se na defesa e no ataque e introduzia um elemento de intelectualidade extra que não estava presente da mesma forma no futebol. No futebol havia tempo para pensar e a técnica (para quem a tinha) resolvia muitos problemas. O basquetebol exigia um pensamento mais rápido, a criação de padrões de movimentos (as jogadas) e acções pré-definidos. Havia, para um jogador menos talentoso como eu sempre fui, mais possibilidade de evoluir: Se soubesse compreender bem o jogo, poderia acompanhar jogadores de maior qualidade, coisa que não me era possível no futebol.

Nessa altura a referência da NBA eram os Detroit Pistons. Apanhei a fase dos Bad Boys, de Isiah Thomas, Joe Dumars, Dennis Rodman, Bill Laimbeer, Rick Mahorn, etc. Foram campeões em 1989 e 1990 e, apesar de não serem preferidos por muitos, ressonavam comigo, por terem encontrado uma forma diferente de competir e vencer. Ainda apanhei um pouco de Larry Bird (embora o tenha descoberto já bem mais tarde) e Magic Johnson e depois dos Pistons veio a era Chicago Bulls e Michael Jordan. Ainda acompanhei mais uns anos e segui a espaços a era de Popp (Gregg Popovich, o treinador actual e de então dos San Antonio Spurs) e o início dos Lakers de Kobe (Bryant). Depois disso perdi um pouco de vista a liga e não vi a revolução que surgiu nos últimos anos, muito graças a análises estatísticas do jogo.

Há no basquetebol um manancial de formas de análise estatística. Os mais conhecidos da maioria são os pontos, ressaltos e assistências por jogo. Eram basicamente os valores que eu via nos tempos em que seguia o desporto. A estes acresciam roubos de bola, blocos, turnovers (perdas de bola sem lançamento, só às vezes referidas) e dividiam-se os ressaltos em defensivos e ofensivos. E era essencialmente tudo. Hoje o jogo mudou e muito. Primeiro eu comecei a ver referência a percentagens de lançamento: de forma simples, qual a frequência com que um lançamento resultava num cesto. Estas eram tratadas de forma completamente global, no máximo separando os lançamentos livres. Um lançamento junto ao cesto era tratado da mesma forma que um lançamento a 2 metros da linha de 3 pontos. Com o tempo estes dados foram sendo expandidos.

As primeiras indicações vieram com a percentagem de lançamento efectiva (Effective Field Goal Percentage, eFG%, no original). Este dado veio mudar os cálculos, pois compreende que um cesto de 3 pontos vale 50% mais que um cesto de 2 pontos. Isto parece óbvio, mas veio mudar os valores das eficiências de lançamento. Uma vez que os lançamentos de 3 pontos tinham menos sucesso, quem os fazia com mais frequência era prejudicado quando olhando para as eficiências totais. Com o eFG%, jogadores mais pequenos que vivem no perímetro (i.e., mais afastados do cesto, habitualmente para lá da linha de 3 pontos) viram-se valorizados. Isto veio depois mudar tudo, ao trazer o foco do jogo para a eficiência de lançamento (já lá chegamos).

Outra revolução no cálculo do valor de equipas e jogadores surgiu com o Box Plus/Minus (BPM). Já existia desde os anos 70 mas eu pessoalmente não tinha visto muita informação sobre isso, talvez porque as minhas fontes até há pouco tempo eram os jornais portugueses e recentemente comecei a ler artigos em media (jornais, blogues, sites) americanos, que usam esta métrica em todas as análises. O BPM é essencialmente uma medida de quanto um jogador contribui em pontos, de forma positiva ou negativa, durante 100 posses de bola, em comparação com um jogador médio e a jogar numa equipa média na NBA. Essencialmente, qual a contribuição positiva ou negativa que um jogador terá.

Outros aspectos têm sido adicionados para refinar ainda mais a informação. Não só a maioria dos cálculos de eficiência são feitos por 100 posses de bola, quando é calculado um valor para um determinado jogador, não é feito tanto por jogo mas antes por 36 minutos, que é o tempo mais comum de jogo que a maior parte dos jogadores costumam ter (um jogo de basquetebol na NBA tem 4 partes de 12 minutos cada). Há ainda quem se dedique a calcular os valores retirando o que chamam de tempo-lixo (garbage time) que é o tempo em que um jogo está já decidido. Assim, se uma equipa entra nos últimos 2 minutos com uma vantagem de 20 ou mais pontos, habitualmente os treinadores começam a sentar os titulares para os poupar e ninguém se preocupa muito com o que acontece. Alguns jogadores aproveitavam no passado para melhorar as estatísticas nestas alturas, mas com as estatísticas a removerem este período, isso pouco adianta.

(Nota: há quem tenha tentado extender este conceito ao futebol e remover estes valores das estatísticas de marcadores de golos. De certa forma seria como dizer que os 3 golos que um Messi ou um Ronaldo marcariam nos últimos 20 minutos a terminar uma vitória por 6-0 não teriam valor (porque com 25 minutos para terminar o jogo estaria já a 3-0, essencialmente decidido). Isto contudo não faz sentido, porque no futebol os golos marcados e sofridos (especialmente a diferença entre os dois) conta para a classificação final. No basquetebol não serve para nada. Uma vitória por 60-40 ou 120-119 vale exactamente o mesmo.)

Esta foi a introdução ao nível de profundidade que a análise estatística no basquetebol conseguiu atingir. Note-se que se os americanos são obcecados por estatísticas, a maior parte das vezes costumávamos associá-las a desportos com paragens frequentes e programadas, como o futebol americano e o basebol. Um jogo mais fluido como o basquetebol habitualmente não era condizente com análises estatísticas complexas. Mas apesar de tudo isto, aquilo que veio mudar o basquetebol foi a reanálise da importância dos lançamentos de 3 pontos.

Os 3 Pontos

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Quando eu jogava basquetebol ("jogava", para ser generoso), não só seguia o basquetebol da NBA como o do campeonato nacional. Nessa altura as duas potências eram o Benfica e a Ovarense. O Benfica era treinado por Mário Palma e tinha jogadores como Jean Jacques, Guimarães, Mike Plowden e Carlos Lisboa (entre outros). A Ovarense tinha duas super-potências individuais: DJ (não consegui descobrir o seu nome completo) e Mario Ellie (que viria mais tarde a ser campeão da NBA com os San Antonio Spurs). O Benfica vencia mais (tinha maior quantidade de melhores jogadores e um treinador também muito bom) e o seu jogador mais destacado era Carlos Lisboa (hoje treinador, se não me engano). Era frequentemente falado, pelo menos entre os miúdos da minha idade, como o único jogador português que teria qualidade para jogar na NBA. O maior crime que lhe era apontado era a quantidade de triplos (lançamentos de 3 pontos) que tentava durante o jogo. (Isto era irónico porque pelo menos entre os meus amigos essa crítica vinha de adeptos do Sporting, que esqueciam que Lisboa tinha sido formado no clube deles).

Hoje a crítica seria dissipada e o valor de Lisboa visto mais pelo prisma da sua percentagem de lançamento de triplos (3PA). Isto porque desde há uns anos que as equipas na NBA se têm focado em aumentar, por vezes de forma dramática, o número de triplos tentados por jogo. Tudo começou em 2014 com um artigo científico que reflectia sobre a eficiência dos lançamentos em relação à sua localização, presença de defesas, e se tentados a partir do drible (off the dribble) ou após um passe (catch-and-shoot). Num artigo mais recente no site Fivethirtyeight, um estudo essencialmente cartográfico demonstra de forma mais simples esta importância. Abaixo mostro um dos gráficos deste artigo.

cartography nba shots.png

O gráfico demonstra de forma simples a importância do triplo. Apesar de ter percentagem mais baixa de concretização, os 50% extra de pontos mais que compensam essa perda de eficiência. Basicamente, cada triplo valerá pelo menos um ponto e só lançamentos perto do cesto valerão mais.

Isto significa que as equipas começaram a focar-se cada vez mais nos triplos. Os Houston Rockets desenvolveram toda a sua estratégia baseada nisto e têm como principal estrela James Harden, um jogador que não tem percentagens muito elevadas de triplos (36,5% ao longo da carreira, comparado com 41,9% e 43,6% para Klay Thompson e Stephen Curry, respectivamente, os chamados Splash Brothers dos Golden State Warriors). A diferença é que James Harden é capaz de tentar os triplos a um ritmo bastante mais intenso que Curry ou Thompson. Harden tentou 8,9 triplos por 36 minutos pelos Houston Rockets, com 9,3 de média desde 2014 e sempre a subir culminando numas ridículas 12,9 tentativas por jogo nesta última época. Para comparação, Thompson tentou de forma regular cerca de 8 tentativas por 36 minutos (8,2 de média) no mesmo período de tempo. Já Curry tentou 11.0 de média, mas de forma distinta, com uma enorme percentagem das suas tentativas a virem de bastante longe da linha de 3 pontos.

Aquilo que acontece com este aumento de lançamentos, especialmente na NBA, é que mais espaço acaba por surgir perto do cesto. Dado que na NBA só a defesa homem a homem é permitida (embora exista um pouco de flexibilidade nesse conceito), basta as equipas colocarem os seus jogadores no perímetro do ataque (junto à linha de 3 pontos) para atrair defesas e criar espaço para penetrações, assim aumentando a probabilidade de cestos de valor elevado: os que valem 1,20 pontos por lançamento no gráfico acima.

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James Harden cumpre também este outro requisito, dado que é um jogador forte e rápido, portanto capaz de penetrações para o cesto e de concretizar outro tipo de tentativas. Além disso, sendo forte, também procura muito o contacto e consegue assim atrair faltas, o que o leva para a linha de lançamento livre e aumenta a sua produtividade. Neste último ano, com a segunda principal estrela dos Rockets (Chris Paul) lesionada por largos períodos de tempo, Harden atingiu valores estratoféricos de 35,4 pontos por 36 minutos.

Este último ano viu ainda a explosão de Giannis Antetokounmpo (Milwaukee Bucks), um jogador de uma capacidade de explosão impressionante e que beneficiou de um estilo de jogo onde os seus colegas se colocaram no perímetro e, sendo bons lançadores de triplos, atraíram os defesas abrindo espaço para as cavalgadas de Antetokounmpo que se tornou o jogador mais devastador da época regular.

Para permitir um bom uso dos lançadores de triplos, o jogo comçou a focar-se em jogadores capazes de ter um bom pick and roll, o movimento em que um jogador (sem bola) vai fazer o screen para impedir o movimento do defesa do colega que tem a bola (o pick) e depois roda na direcção do basquete para oferecer a esse mesmo colega a opção de passe (o roll). Como a maior parte das defesas trocam quando o screen é feito (o defesa do jogador com bola passa a defender o jogador que fez o screen), jogadores capazes de receber a bola e lançar ou distribuir tornam-se essenciais (o que explica a importância de um jogador como Draymond Green nos Golden State Warriors).

Temos então que os jogadores mais valiosos da NBA hoje em dia serão aqueles capazes de boas médias de triplos e capazes de penetrar facilmente para o cesto. Como para maximizar o seu jogo é importante ter bons jogadores no pick and roll, estes são também excelentes adições, especialmente se capazes de defender bem jogadores de tamanhos e estilos diferentes. Por fim, se além de terem bons lançamentos, os jogadores forem altos e tiverem boa envergadura para poderem lançar acima dos braços dos defesas, podem ser estrelas. É por isso que um jogador como Kawhi Leonard, que este ano foi o MVP das finais com os Toronto Raptors, é tão importante. É dos melhores defesas da NBA, tem uma envergadura invejável, lança bem e penetra bem.

Tudo isto significa que muita gente considera que a NBA é menos interessante de ver. Antigamente valorizavam-se mais os jogadores capazes de lançamentos de média distância com oposição. O jogo vivia mais das penetrações no meio de defesas densas (as regras também mudaram para punir mais as defesas) e jogadores como Jordan, Barkley e outros beneficiavam. Hoje a importância recai em jogadores capazes de jogar mais afastados do cesto e criarem os seus próprios lançamentos (especialmente de 3 pontos). É por isso que Lebron James, provavelmente o melhor jogador desde Jordan (alguns dirão de sempre) foi evoluindo o seu jogo, desde um penetrador explosivo para um lançador de distância. Claro que Jordan se teria provavelmente adaptado a esta era. A marca que o definia era a sua capacidade de se adaptar a cada situação e a encontrar sempre as soluções necessárias, mas o Jordan de 1995 não teria grande sucesso na NBA actual.

E assim vemos a evolução deste desporto. O estilo é menos espectacular, mas o númro de pontos por jogo aumentou dramaticamente. Há quem não goste, mas é o caminho que a análise estatística do jogo descobriu. No futuro irão surgir outros e espero que sejam tão fascinantes como este.

E Carlos Lisboa? Bom, a sua percentagem talvez não fosse muito elevada. Esta página indica um valor de 34,6% para triplos e 53,0% para eFG% em 15 jogos nas competições europeias, semelhantes aos valores de Harden. Isso não significa que tivesse capacidade de ser estrela (Harden distribuiu ao longo da carreira uma média de 6,5 assistências, contra as 1,1 de Lisboa, por exemplo), mas poderia ter sido um bom jogador a ter na equipa, para ajudar a espaçar o jogo (criar espaço para os colegas). Tivesse nascido 30 a 35 anos mais tarde, e Lisboa poderia de facto ter sido o primeiro português na NBA.

Outras leituras:

O lançamento de 3 pontos
Mais sobre a matemática dos lançamentos de 3 pontos
Mais sobre a análise dos 3 pontos, por um treinador
Continuando sobre a análise dos 3 pontos
A evolução dos Houston Rockets
A importância de Stephen Curry e a revolução que ele causou

 

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