Esta noite sonhei com fusão
Maria Dulce Fernandes, 23.06.22
Mas a vida desliga à noite, quando te deitas, quando jogas à bisca com esse pervertido do Morfeu e ele te deixa ganhar durante umas horinhas só para contrariar, até tirar o fortunoso trunfo da manga e te levar nas tais asas para o tal reino encantado que Freud explica tão bem.
Os meus sonhos são invariavelmente estranhos, porque têm quase sempre a ver com casas e água, mas esta semana bateram o record da bizarria.
Pode ser cansaço, pode ser recalcamento, pode ser desejo, posso andar a ver muitos filmes que se traduzem num significado onírico fantasista, sei lá, mas foi interessante. Lembro-me de cada detalhe como se o tivesse acabado de ler num livro de Stephen King.
Ontem foi assim:
Chovia lá fora; grossos pingos duma água barrenta que por tardia no ano, acartava consigo toda a imundície que a Primavera não lavou. Batia na janela com força e deixava tristes riscos verticais que tornariam a pó. Estava em pé na cozinha e os traques do maldito candeeiro de tecto sobrepunham-se ao Madness dos Muse que tocava como música de fundo enquanto eu, usando uma cabeça de lobo decepada e presa com flechas quebradas aos ombros, gritava em plenos pulmões: Alăla Alăla!
O que, como podem ratificar, quem disse "diz-me o que lês, dir-te-ei quem és" era alguém bem doutrinado nas coisas da vida...
Continuando:
Eu cobrira tudo, bancadas, chão, parede, tudo... com sacos vazios do Auchan. Alguém estava deitado na minha mesa de cozinha, amordaçado e nu. Que nojo, pensava eu, um tudólogo que passou a vida inteira a armar aos cucos com todo o que mexia ou vestia saias, afinal é "isto"? É que mesmo depois de bem amukinado, marinado e salteado com miso e vegetais, não chega a nada. A nada mesmo, caramba! Grande monte de esterco, que não vales nada! Por uma vez na vida consegue uma pessoa ter um sonho em condições em que personifica o seu herói para isto... Grande decepção.
Miolos! Uma cabeçorra daquelas deve ter uma mioleira considerável lá dentro. Peguei na lima de unhas, naquela que costumo ter de parte quando uns sapatos mais apertados me desgraçam as unhas de cinderela, e tratei de começar a abrir-lhe a cachola. A pingar suor em gotas mais grossas do que as da chuva que batia na janela, enquanto a alimária ali esfarrapada e envolta em película aderente trauteava "Raindrops keep falling on my head" com um gorgolejar bem do fundo da garganta, encolhi os ombros e tratei de escolher da minha panóplia de instrumentos de serial killer, outro que não a lima, mais adequado para uma craniotomia. Voilà! Um corta-unhas dos grandes, da loja dos chineses, conseguiu em poucos segundos o que a lima não conseguira em horas.
Pop! Saltou-lhe a tampa como uma garrafa de coca-cola agitada até á exaustão, mas para meu grande espanto a massa encefálica era azul! Ou estava podre, ou era aquela a cor da porcaria que os chicos-espertos têm dentro da cabeça. Não há direito! Perde uma pessoa um sonho inteirinho a tentar Hannibalizar aquele pedaço de esterco, e não tem nada que se aproveite, nem ponta por onde se pegue!
Olhei com tristeza para a minha cozinha. Tanto trabalho para nada! Então e o jantar? Uma omelete de cogumelos e sopa de legumes que o tempo não dá para mais.
Então e o corpo? Pois, isso mesmo, mando pela janela. As Senhoras e Senhores e Meninos e Meninas de bem aqui desta zona nobre não têm por costume apanhar os excrementos dos canitos que passeiam para a frente e para trás durante o dia todo, por isso mais dejecto menos dejecto no passeio ninguém vai notar...
Entretanto o Bat Cat e o Fat Cat, vindos do céu dos pardais, lutavam pelas asas duma borboleta peluda com cara putinesca. Larguem lá isso, que está cheio de nazismos obscenos, crueldades, atrocidades e cobardias e ainda vos vai fazer mal, mesmo depois de mortos! E, num rompante, peguei num chanato de pano para os vergastar.
Foi então que acordei.
Levantei-me revigorada e fui fotografar o nascer do sol, coisa que instagramo fazer.
Cá vamos cantando e rindo. Isto enquanto podemos, claro.