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Delito de Opinião

Escrever

Cristina Torrão, 10.01.21

- Não te esqueças de pôr no saco o livro que estou a ler. Ah, e traz-me algo para escrever.

- Para escrever?

- Sim, uma esferográfica e um bloco, ou um caderno. Pode apetecer-me tomar umas notas.

Sorri, ao telefone. Ele não viu, os nossos telemóveis são antigos, não permitem videochamadas. Sorri para mim, porque achei a ideia boa.

Cheguei ao hospital. Em frente à porta, estava um segurança, sentado a uma secretária, com a sua máscara. Covid oblige. Em tempos normais, entra-se livremente, nem sequer há horas para visitas. Também já lá fui a consultas, ou fazer exames médicos. Se soubermos o caminho, nem sequer precisamos de nos anunciar na recepção.

- O que deseja?

- Venho trazer este saco para o Sr. Neumann.

- Ah, então pode dirigir-se ali à recepção.

A funcionária da recepção pôs uma etiqueta no saco de viagem com o nome do meu marido e o número do quarto. Agradeci e dirigi-me à saída. A minha visita ao hospital não tinha durado cinco minutos. Nem sequer tive de pagar estacionamento. Enfiei o cartão na máquina e ela devolveu-mo, com a indicação de que estava validado para a saída. O carro não estivera tempo suficiente no parque para que começasse a cobrar taxa.

Não vejo o Horst desde quinta-feira de manhã, quando ele saiu para o trabalho, pelas 7h15m. Estava ainda escuro e a temperatura andava à volta de um ou dois graus positivos. Havia uma chuva fraca, misturada com um pouco de neve, mas o piso não parecia escorregadio. Ainda assim, achei que ele não devia ir de bicicleta, apesar de ele ser cuidadoso e estar habituado a andar naquelas condições. Os serviços camarários espalham areia e sal nas ruas, nos passeios e nas ciclovias.

Ele saiu para o lajedo do jardim.

- Não há gelo no chão.

Por vezes, é mais perigoso, quando só algumas pequenas áreas estão escorregadias e o resto não. E, desta vez, a coisa não correu mesmo bem. O Horst só andou quinhentos metros. A bicicleta escorregou, ele deu um valente tombo, caiu estatelado. Ligou-me atordoado, conseguira levantar-se, mas tinha dores e não podia mexer a perna direita. Já tinha ligado para a Emergência, pediu-me para ir buscar a bicicleta, quando pudesse.

Estava ainda a arranjar-me, demorei cerca de meia hora a chegar ao local. Já não havia sinal dele, nem da ambulância, apenas lá estava a bicicleta.

Passado duas horas, ligou-me a dizer que já não saía do hospital. Tinha fracturado o fémur direito e iria ser operado nesse mesmo dia. E visitas, em tempo de pandemia, estão fora de questão.

Felizmente, tem corrido tudo bem e a preocupação inicial desapareceu. Hoje, quando lhe liguei, ao início da tarde, disse-me que estava a escrever. Perguntei-lhe o quê.

- Tudo o que me aconteceu, desde o dia 7. O acidente, o hospital, a operação, tudo de que me lembre.

Tornei a sorrir. Imaginei-o a escrever à moda antiga, a esferográfica a deslizar sobre a folha do caderno que lhe meti no saco. A única tecnologia que o Horst tem com ele é um telemóvel comprado há sete ou oito anos. Não quis que lhe levasse o tablet, não usou a internet, desde que entrou no hospital. E, ao contrário de mim, é alérgico a redes sociais.

Escrever é ganhar distância daquilo que nos está a moer por dentro. Doenças, acidentes, estadias hospitalares fazem parte da vida. A ideia de passar uma esponja sobre aquilo que nos corre mal é uma ilusão. Esquecer é impossível. E, de vez em quando, lá torna a vir tudo ao de cima. Nós tornamos a empurrar para baixo e é tão esgotante, que ficamos mal dispostos, violentos; ou queixosos, impossíveis de aturar.

Escrever não cura, mas alivia, ajuda a suportar, ajuda a fazer as pazes com a vida, mesmo quando ela nos prega partidas. E bem hajam vocês que leram estas palavras!

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