Enamorada
Há livros pelos quais nos apaixonamos e que lemos já não com prazer, mas com volúpia. Adiando no último terço o seu desfecho, sofrendo por antecipação o momento em que temos de os devolver à prateleira. Com "Coração Tão Branco", senti um desses enamoramentos - para citar outro título do autor, o espanhol Javier Marias. Dele li com entusiasmo outros títulos. Todos me revelaram talento para urdir enredos e construir personagens complexas, que página a página se retratam, num striptease delicado. Mas este romance, amplamente premiado, coloco-o no meu pequeno altar privado, porque me revelou o que eu sabia e não sabia, mas por palavras que jamais conseguiria juntar, tal a subtileza, inteligência e elegância da escrita.
Estou para aqui a falar de forma, mas o conteúdo é o melhor. Passo a citar:
"Guarda silêncio quem já tem alguma coisa e corre o risco de a perder ou está prestes a conquistá-la";
"Há muitos homens que julgam que as mulheres têm necessidade de se sentir muito queridas e aduladas, inclusive mimadas, quando o que mais nos interessa é que nos entretenham, isto é, que nos impeçam de pensar demasiado em nós próprias. Esta é uma das razões porque costumamos querer ter filhos";
"Abdicamos da linguagem da infância, abandonamo-la por ser demasiado esquemática e simples, todavia aquelas frases descarnadas e absurdas não nos abandonaram por completo, mas subsistem nos olhares, nas atitudes, nos sinais, nos gestos e nos sons".
A tentação é continuar, mas chega. São bons exemplos do que o autor consegue fazer. Através das personagens introduz com habilidade inúmeros pontos de reflexão e vai fundo, nós a reboque, inebriados pela sofisticação musical de cada frase.
Sim, estou enamorada, mas não sou egoísta e partilho: se não leu este romance que Javier Marias escreveu em 1992, ainda vai a tempo.