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Delito de Opinião

Emoções  #6

Maria Dulce Fernandes, 13.05.21

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Todo o Desporto, principalmente o Futebol, é uma emoção. 

Nascida no bairro ao lado e criada em Belém, uma das minhas mais antigas e mais nítidas memórias é estar vestida com umas jardineiras azuis com enormes botões azuis claros de madeira e sentada na cadeira giratória da barbearia do Felgueiras, em frente ao Chafariz da Memória, com o meu avô Américo a apressar o exímio assassino de fartas melenas, até chegar ao pretendido look à Joãozinho. Vamos lá, Felgueiras, que o jogo daqui a pouco começa, dizia o meu avô com o relógio fora do bolso do colete, já a perder a paciência com os retoques finais. O produto daquele devaneio capilar havia de dar grandes dores de cabeça ao meu avô durante muito tempo, sendo que “cortar o cabelo à Joãozinho" se tornaria anedota familiar, qualquer coisa na linha “quem não tem cão, caça com gato".

Mal acabou de pagar, o meu avô pôs-me literalmente debaixo do braço e ala que se faz tarde, desatou a correr pelas terras, passou o Salão Portugal, atravessou a Calçada da Ajuda, a  antiga Rua Coronel Pereira da Silva e desceu uns barrancos e mais umas terras até chegar às Salésias.

Sentada no chão à beira da relva a lambuzar-me com um chupa de groselha, via uma data de pernas a correr atrás de uma bola, num qualquer jogo de treino do Belenenses,  em que o meu avô, torneiro mecânico de profissão e árbitro de coração, vibrava sempre como se fosse uma grande final. Foi o maior Belenense que conheci. Aprendi com ele que não há nada mais belo do que a Cruz de Cristo ao peito, bem em cima do coração. Aprendi que a vista do Restelo para o mar inspira grandiosidade. Aprendi a vibrar com as vitórias e a aceitar as derrotas com a dignidade de um verdadeiro adepto de sangue azul. Fiquei rouca e doida em 28 de Maio de 1989. Belém viveu um tsunami azul e eu fico feliz em ter feito parte dele.

Foi uma emoção indescritível.  Belenenses para sempre. Com a certeza de vencer!

Com o casamento, recebi o nome do marido como era da lei e a loucura verde. Identifiquei-me prontamente com a dignidade da resignação e da tolerância do meu sportinguista, tão diferente da arrogância clubística que diariamente provocava grande parte da poluição sonora no meu local de trabalho.

Só tivemos divergências futebolísticas quando os nossos clubes se enfrentavam e mesmo assim quem ria por último respeitava o meio sorriso do outro. Foi sempre assim. Vibrei com ele em 1982, em 2000, em 2002 e este ano a 11 de Maio, numa noite memorável em que, sentados com a neta a ver um espectáculo e com o telemóvel quase sem luz de ecrã, estávamos sempre atentos ao desenrolar do jogo, a neta a perguntar constantemente “então, então?” ou não fosse ela uma digna descendente de almas leoninas. Pulámos os três no Largo do Carmo em frente ao quiosque como se tivéssemos molas nos pés. Rapaziada, oiçam bem o que vos digo e gritem todos comigo!

Foi uma emoção tremenda .

Emociono-me a cada vitória, clubística ou nacional.

Correm-me abundantes lágrimas à lembrança daquele Verão de 1984 em Albufeira, com a transmissão em directo da prova de Maratona dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em pé junto ao balcão de um cafezinho apinhado de gente, em frente a um pequeno aparelho de TV. Ver o Carlos Lopes chegar à meta em primeiro, vê-lo subir ao podium, ver a nossa bandeira no mastro mais alto e ouvir o nosso hino tocar foi de uma emoção avassaladora, daquelas que criam sentimentos de pertença tão profundos como uma marca a ferro e fogo.

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