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Delito de Opinião

Em todo o lado

João Campos, 13.03.23

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Fotografia de J. Brown/AFP/Getty Images, na Axios.

Que me lembre, a edição de 2023 dos Óscares foi a terceira em que vi um filme de que gostei mesmo muito a ganhar o principal galardão.*

Julgo que em Abril, quando Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo estreou nas salas portuguesas ninguém esperava que, onze meses volvidos, um filme tão peculiar, tão distante na forma e no tom das clássicas películas "isco de Óscar" que estreiam em Novembro e Dezembro (nos Estados Unidos; mais tarde em Portugal, por norma), viesse a ganhar sete em onze estatuetas douradas, nas categorias de Melhor Filme, Melhor Realizador (realizadores, neste caso), Melhor Actriz Principal, Melhor Actriz Secundária, Melhor Actor Secundário, Melhor Montagem e Melhor Argumento Original. E no entanto cá estamos: um filme que cruza uma aventura de ficção científica com um drama familiar em tons de comédia surrealista conquistou o público e, devagarinho, acabou por convencer a Academia, tradicionalmente conservadora nestas escolhas.

Uma conquista merecida, pois se quisermos ser honestos, o conceito básico de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo tinha tudo para correr mal. Vejamos a premissa: durante uma inspecção do IRS às finanças da sua pequena lavandaria familiar, Evelyn (Michelle Yeoh), imigrante asiática de primeira geração, vê-se arrastada para uma aventura que atravessa vários universos paralelos e múltiplas versões de si mesma, isto enquanto no seu próprio universo tenta perservar o seu negócio, salvar o seu casamento com Waymond (Ke Huy Quan) e evitar alienar a sua filha adolescente, Joy (Stephanie Hsu). Como é bom de ver, há aqui material que daria para fazer vários filmes. Daniel Kwan e Daniel Scheinert podiam ter optado por fazer um drama familiar mais convencional - mais ao jeito dos Óscares - sobre as vagas de imigração, as diferenças geracionais entre quem fica no país de origem, quem parte, e quem já nasce no país de destino, e os traumas que daí resultam. Também podiam puxar pelo lado mais queer da narrativa, explorando essa faceta da personagem de Stephanie Hsu. Ou podiam ter avançado mais directamente pela ficção científica - tanto em formato aventura, saltando pelos universos paralelos (conceito tão na moda nos blockbusters destes tempos), como num registo mais meditativo pelas inúmeras possibilidades que as múltiplas versões de cada um de nós encerram. Qualquer uma destas ideias, se bem executada, poderia dar um bom filme. Qualquer combinação de dois destes conceitos, idem. Todos ao mesmo tempo era no mínimo improvável.

E, no entanto, resulta maravilhosamente. Há uma elegância frenética na forma como Tudo em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo mistura e remistura géneros e convenções narrativas, com um argumento espantoso, uma realização segura, uma montagem arrojadíssima - a premissa assim o exige. E, claro, há um elenco incrível - Michelle Yeoh, sempre deslumbrante, a equilibrar de forma superlativa sequências de acção mais alucinantes com os momentos mais dramáticos (e os mais absurdos). Ke Huy Quan - lembram-se do Short Round do segundo Indiana Jones? - faz-lhe um magnífico contraponto, e Stephanie Hsu teve aqui uma estreia em grande - estava também nomeada, mas viu Jamie Lee Curtis vencer pelo seu maravilhoso desempenho como Deirdre, a auditora do IRS a investigar as contas de Evelyn.

(Abro aqui um parêntese a propósito de Jamie Lee Curtis, pois a sua vitória gerou online dois comentários de sinal distinto, ainda que relacionados, que merecem ser dissecados. O primeiro, que esta distinção terá sido mais um prémio de carreira, como a Academia gosta de dar por vezes; e o segundo, recuperando a polémica recente sobre nepo babies - filhos de gente de Hollywood que singra em Hollywood não tanto pelo talento, que podem ter ou não, como pelas portas que os papás e as mamãs abrem, de forma directa ou indirecta. Ora, se este foi um prémio de carreira, então a Academia decidiu premiar uma carreira muito invulgar, daquelas que ficam na memória de um público especializado, mas não da crítica - afinal, Jamie Lee Curtis optou sempre por papéis menos convencionais, em filmes de género que decerto lhe terão dado imenso gozo (ninguém faz aqueles Halloween todos sem amor ao cinema de horror), mas que não seriam as primeiras opções de outras actrizes com o seu talento e com as suas ligações. E se deverá ser inegável que ser filha de Tony Curtis e de Janet Leigh lhe terá aberto imensas portas, parece-me também certo que com essas ligações, e com o talento e o carisma que possui, podia ter andado confortável pela alta roda de Hollywood. Ao invés disso, fez aquilo de que gosta, e fê-lo muito bem. Stephanie Hsu teria sido uma excelente vencedora, tal como a magnífica Angela Basset - e decerto Hong Chao e Kerry Condon, mas não vi os seus filmes; nem por isso, porém, deixou a estatueta dourada de ficar muito bem entregue.)

Ver Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo é como assistir a um acto de malabarismo que vai acrescentado mais e mais bolas, mas que continua a mantê-las todas no ar, como que por magia. Comovemo-nos com o drama de Evelyn, divertimo-nos com a sua aventura tão improvável, ficamos abismados com alguns momentos - eles estão mesmo a mostrar aquilo?. E percebemos que tudo funciona - a aventura é entusiasmante, a comédia faz-nos rir como poucas na memória recente, e a história familiar comove do início ao fim, com um final que não precisa de ser delicodoce ou melodramático para nos deixar satisfeitos. E demonstra que contar uma história dramática não requer a solenidade e a seriedade, quando não o cinismo, de outros filmes contemporâneos. Ver um filme desta natureza, produzido por um estúdio independente que se tem notabilizado por projectos mais arrojados e alternativos, com um elenco de actores e actrizes que muitos já consideravam "fora de prazo", a conquistar tantos prémios é algo extraordinário, se não for mesmo irrepetível. Aproveitemos, então.

Duas últimas notas sobre os Óscares: a primeira, saudando Guillermo Del Toro pela merecidíssima vitória na categoria de Melhor Filme de Animação com o seu "Pinóquio", contando uma história que tão bem conhecemos de forma brilhante e com uma animação stop-motion excepcional. A segunda, lamentando que Ice Merchants, a curta de animação do português João Gonzalez, não tenha ganho o prémio na sua categoria, que me pareceu ter uma competição fortíssima. Julgo que a curta ainda está nas salas, e recomendo muito: com Óscar ou sem Óscar, são quinze minutos de pura magia no cinema.

*Os outros, já agora, foram O Senhor dos Anéis: O Regresso do Rei em 2004 e A Forma da Água em 2018

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