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Delito de Opinião

Em louvor de Nelson Rodrigues

Pedro Correia, 23.08.22

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Nelson Rodrigues, nascido a 23 de Agosto de 1912 - faz hoje 110 anos - no Recife e falecido no Rio de Janeiro 68 anos mais tarde, a 21 de Dezembro de 1980, é um extraordinário prosador do nosso idioma. O seu legado, durante mais de meio século de escrita torrencial, a um ritmo avassalador, não está ainda devidamente catalogado.

«É provável que nenhum outro escritor brasileiro tenha produzido tanto», assinala o seu biógrafo e principal antologiador, Ruy Castro, sem esconder o fascínio por este jornalista que foi um polemista impenitente, um dramaturgo inconfundível e um transbordante produtor de pensamentos em fórmulas incisivas que não perdem actualidade.

 

«O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza», sublinhava este leitor compulsivo de Eça de Queiroz.

Nelson Rodrigues trouxe à língua portuguesa o fogo da paixão que punha em cada linha da sua lavra. Amava e odiava do mesmo modo desmesurado. Não renegava os adjectivos, antes pelo contrário, mas insuflava-os de um vigor semântico habitualmente reservado aos substantivos.

Coerente com esta perspectiva era a sua peculiar visão do jornalismo. Em sentenças como esta: «A crónica policial piorou porque os repórteres de hoje não mentem.» Ou esta: «Ai do repórter que for um reles e subserviente reprodutor do facto. A arte jornalística consiste em pentear ou desgrenhar o acontecimento e, de qualquer forma, negar a sua imagem autêntica e alvar.»

Poucos conheciam tão bem os jornais por dentro como este «génio da rotina», designação atribuída por O Globo, diário em que colaborou nos últimos 18 anos de vida, até ao próprio mês em que morreu.

 

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Era assim em tudo. A sua própria biografia o confirma. Uma biografia que se lê como um romance porque a vida verdadeira de Nelson Falcão Rodrigues, nascido sob signo Virgem e adepto fanático do Fluminense, imitou muitas obras de ficção.

Leiam O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro: está lá o retrato, vivo e impressivo, de um homem multifacetado, intempestivo, por vezes terno, outras vezes colérico, demasiadas vezes incoerente, eterno romântico, marcado por uma sucessão de dramas familiares e quase sempre tocado pelo génio que lhe incendiava a escrita. Um homem a quem muitos acusavam de "tarado" ou "imoral", que reconhecia ser um "reaccionário" e dizia de si próprio: «Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino.»

 

Foi um cronista excepcional, nado e criado num país que inventou e popularizou a crónica jornalística e a tornou uma insubstituível disciplina da literatura - com pares imensos neste género, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade e Millôr Fernandes.

Tinha um estilo muito próprio, que forjou uma legião de imitadores, caracterizado pela constante repetição de ideias, metáforas e expressões como «grã-fina com narinas de cadáver», «padre de passeata» ou «tempestades do quinto acto do Rigoletto». E também pelo diálogo sincopado com o leitor, transformado em seu cúmplice involuntário e permanente.

 

Foi igualmente um inultrapassável produtor de frases que nos perduram na memória. Citando ainda Ruy Castro, com toda a justiça: «Ele é talvez o maior frasista da língua portuguesa.»

Aqui ficam algumas:

«Deus está nas coincidências.»

«Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor.»

«Todas as vaias são boas, inclusive as más.»

«Todo tímido é candidato a um crime sexual.»

«A cama é um móvel metafísico.»

«Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.»

«Só o inimigo não trai nunca.»

«Só os imbecis têm medo do ridículo.»

«Na vida, o importante é fracassar.»

«Invejo a burrice, porque é eterna.»

 

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Idolatrado pelas gerações mais jovens, enfastiadas com o estilo entorpecente e a prosa insípida dos amanuenses da escrita, Nelson Rodrigues conseguiu ver incorporadas expressões da sua lavra na linguagem comum, tornando-as património universal da língua portuguesa. Expressões como «toda unanimidade é burra»«óbvio ululante» e «um calor de derreter catedrais».

Faleceu num domingo, vítima de uma trombose. Nesse preciso dia, horas depois, ganhou o totobola brasileiro: as suas previsões bateram certo. Se sobrevivesse, seria rico - algo que nunca lhe aconteceu em vida. Até na morte a sua figura ganhou contornos de personagem de ficção. Como as que ele criou para peças tão controversas como O Beijo no Asfalto e Toda Nudez Será Castigada.

 

A morte, tal como o amor, é tema omnipresente na sua obra. Dizia ele que «a morte natural é própria dos medíocres». E fornecia abundantes exemplos em abono da sua tese: Lincoln, Gandhi, John Fitzgerald Kennedy. "O grande homem sempre morre tragicamente."

Paradoxo suplementar num homem que soube cultivar contradições como ninguém: 42 anos após a sua morte, Nelson Rodrigues ainda é a cara do Brasil real. Que melhor homenagem pode haver a um escritor do que esta?

 

Texto reeditado, com pequenas alterações

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