Eça e a Rússia
Enquanto foi cônsul em Newcastle, Eça de Queirós escreveu estas "Crónicas de Londres" em 1877/8, 15 textos publicados no jornal A Actualidade, os quais vieram a ser coligidos em livro apenas aquando do centenário do seu nascimento (Editorial Aviz, 1944). E ainda bem que o foram. Não tanto pela sua ironia, cáustica até roçar o sarcasmo, e nisso eivada de moralismo, sobre as características da sociedade inglesa, as quais, como lhe foi muito comum, tomava como tiques. Mas muito mais pela forma como dali ecoava o mundo - e nisso muito a França de Mac-Mahon, e de Hugo, ainda que esta não seja aqui sombra tutelar -, assim informando o rincão, nisso deixando um olhar que aparece hoje imensamente contemporâneo. Nas reflexões sobre a influência da imprensa, a real e a então imaginada, mas também no entusiasmo pelas inovações tecnológicas que tanto a transformavam, sem com isso deixar de cutucar os desmandos informativos a que ia assistindo.
Nestes textos há uma enorme actualidade que sobreviveu na verve de então, agora ainda mais patente pela atenção analítica - ora em tons sarcásticos ora militantes - à guerra russo-turca que decorria, essa sequela da guerra da Crimeia de vinte anos antes, mais uma etapa dos anseios moscovitas de aceder ao Mediterrâneo. Embrenhado no debate britânico de então, entre os radicais pacifistas e os paladinos da intervenção em prol da Turquia, Eça deixou páginas esplêndidas. Entre elas escolho estes dois trechos- tão contemporâneos que de difícil digestão para muitos literatos de ardor russófilo, esses que por cá ainda abundam:
- 10 de Janeiro de 1878
"Onde estão os tempos saudosos em que cada telegrama nos trazia uma vitória turca? Onde estão êsses dias em que os correspondentes nos pintavam as cargas irresistíveis da infantaria otomana atroando os céus com o grito de Allah! Allah! e apavorizando divisões russas?
Onde estão os vitoriosos e os ghazis? Onde estão as lágrimas do Imperador da Rússia choradas nas noites de derrota? Onde estão as tardes alegres em que um coração liberal se regozijava, pensando que o Czar e o seu Govêrno autoritário, despótico, teocrático, semi-bárbaro, humilhado pelas derrotas na Bulgária, seria na Rússia feito em pedaços por uma revolução niilista? Ai, tudo nos passou! Hoje o que se nos diz, cada dia, é que mais uma fortaleza turca foi tomada, mais um regimento aprisionado, mais um passe dos Balcãs atravessado, mais uma enxadada cavada na sepultura da Turquia. O Czar não só não é destronado, mas é recebido em Sampetersburgo com um fanatismo tão alucinado, que pessoas deixam-se atropelar para se poderem prostrar, beijando-lhe as botas, tocar com a ponta dos dedos na sua espada santa! E são os ministros do Sultão, que dizem ao novo Parlamento em Constantinopla: Estamos perdidos, rendamo-nos!
É doloroso ver que esta guerra injusta tem como resultado fortificar, enfatuar, perpetuar um govêrno inimigo de tôda a liberdade, defensor de todo o despotismo, cuja justiça se chama Sibéria, cuja administração se chama Polónia, que tempera a liberdade dos jornais pelo assassinato dos jornalistas, que liberta os servos para melhor poder explorar pelos impostos, que condena um romancista ou um poeta a prisão perpétua, se o seu poema ou a sua novela desagradam à polícia, que expulsa todo o estrangeiro suspeito de liberalismo como se enxota um cão, que tem como sistema de govêrno a delação e a espionagem, que chicoteia as mulheres cujos maridos não convêm, que exila os maridos cujas mulheres convêm, e que civiliza as raças de civilização inferior - destruindo-as.
Eu não tenho certamente nenhuma simpatia pelo Sultão: uma tão rica porção de território europeu, como a Turquia, nas mãos de uma raça preguiçosa e asiàticamente passiva, é certamente uma perda para a civilização, é uma esterilização de fôrça produtiva; mas se o golpe ao Urso Branco, ao campeão da tirania, pudesse vir da Turquia - hurrah! pela Turquia! hurrah! pelo chino ou pelo mongol! hurrah! por qualquer povo negro ou nu, que pudesse libertar a Rússia, a Europa, a liberdade e o pensamento desta tenebrosa entidade, o Govêrno do Czar! (...) (183-185)
- 26 de Janeiro de 1878
"Um dos meus grandes ódios políticos é a Rússia; não o povo russo, que tem qualidades magníficas, mas o Govêrno russo, que não só exerce o despotismo em sua casa, mas que o defende, o auxilia e o promove nas casas alheias. (...) o grande paladino do absolutismo na Europa; em tôda a parte em que um movimento de liberdade se manifestava, ele corria a ajudar a sufocá-lo; todo o trono despótico e tirânico que uma revolução abalava, tinha-o ao seu lado como defensor oficial do despotismo.
O actual Czar (...) tem apoiado com a sua influência, com os seus conselhos, com o seu dinheiro, tôdas as tentativas mais ou menos aventureiras que se têem feito contra o livre espírito da época: foi êle que mais embaraçou e contrariou o movimento liberal de 68 em Espanha; foi ele que deu o mais alto aplauso ao Ministério Broglie, de ominosa memória; foi dêle que D. Carlos, na sua criminosa guerra civil, recebeu as palavras mais animadoras; o seu desejo seria colocar o Conde de Chambord em França, D. Miguel em Portugal, restabelecer os Bourbons em Nápoles e restituir os ducados de Itália aos príncipes fanáticos e tiranetes. Isto, reunido à maneira como a Rússia é governada, tornam-no pouco simpático a todo o espírito liberal." (...) (201-202)