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Delito de Opinião

Eanes exemplar

Pedro Correia, 02.04.20

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Como o Sérgio já assinalou, Ramalho Eanes concedeu ontem uma notável entrevista à RTP. Entrevista presencial, desde logo: o general deslocou-se pessoalmente ao estúdio da televisão pública apesar de pertencer a um grupo de risco nesta fase mais assanhada do coronavírus: tem 85 anos, embora pareça mais jovem - tanto pelo físico como pelo intelecto. «Nos tempos incertos vai-se ao local», declarou sem mais rodeios.

Com esta decisão - assumida sem a menor hesitação, como a jornalista Fátima Campos Ferreira assinalou - o antigo Presidente da República deu desde logo uma lição aos heróis de sofá que pululam por aí, muitos deles com idade para serem seus filhos e até seus netos. "Heróis" da treta, que exercem a função comentadeira no conforto doméstico, devidamente calafetados, e aí dão livre curso às suas bravatas verbais.

Deu igualmente uma lição àquele jovem deputado que há dias compareceu de máscara no plenário da Assembleia da República - hoje seguramente um dos lugares mais "higienizados" do País - esquecendo que àquela mesma hora faltavam máscaras em todos os hospitais portugueses. Imagem lamentável: só admito ver um político de máscara em local de grave risco sanitário, nunca na sala de sessões do Parlamento.

O general, em palavras lúcidas e inspiradoras, apontou a estes apavoradinhos o rumo a seguir: «Nós, os velhos, quando chegarmos ao hospital, se for necessário, oferecemos o nosso ventilador a um homem que tenha mulher e filhos.»

 

Eanes foi exemplar por tudo quanto afirmou. 

Anotei outras das suas reflexões e transcrevo-as aqui. Para mais tarde recordar.

 

«A primeira coisa que esta batalha nos exige é que sejamos virtuosos - isto é, que sejamos humildes. Que percebamos que somos falíveis e muito frágeis. Uma fragilidade que só se compensa através de uma comunicação autêntica com os outros.»

«O medo é razoável, mas é nossa obrigação ultrapassá-lo. Nesta altura temos que pensar que estamos com os outros. Temos que pensar menos no eu e mais no nós. De maneira que todos quantos carecem de apoio tenham a nossa solidariedade.»

«Esta crise demonstra que nenhum país, por si, consegue resolver os problemas. A própria China, poderosa, no início da crise recebeu o apoio da França e até da Itália.»

«Isto levar-nos-á, necessariamente, a uma nova reflexão. Primeiro, a uma nova reflexão sobre os nossos sistemas políticos. E sobre o homem: porque é que o homem se tornou tão egoísta, tão individualista, que até se esqueceu que o mundo é de interligação permanente? Como é que vamos gerir a globalização? A globalização é interdependência, mas deixou de ser solidariedade.»

«O homem, com os avanços da ciência e da tecnologia, julgou ser capaz de tudo. E esta situação pandémica demonstrou que afinal continua o tal ser frágil, falível, que está em permanente ligação com os outros.»

«Isto vai levar-nos a repensar as próprias funções do Estado. O Estado não pode ser o Estado mínimo, como se diz: tem que ser o Estado necessário. Que não olha apenas para a situação presente e para as eleições: olha para o futuro da sua comunidade.»

«Esta crise é um momento de silêncio, de reflexão, de comunhão. Se não for assim, estamos a perder uma oportunidade única que nos é oferecida - com dramatismo, com dor, com desgosto.»

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