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Delito de Opinião

Do princípio ao fim (8)

José Navarro de Andrade, 30.09.16

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“«La caballería ya no tiene sentido», comentó el capitán Arderíus al término de la reunión del 8 de febrero, martes.”
Assim começa assim “Herrumbrosas Lanzas” de Juan Benet (1927-1993). A melhor maneira de alegar a favor dos méritos desta escolha como admirável abertura de um livro é recorrer à frase que inicia outro livro de forma exemplar: “A beginning is the time for taking the most delicate care that the balances are correct.” (“Dune” de Frank Herbert).
Mesmo em Espanha, embora tenha atingido aquele ambíguo estatuto em que fica mal a um literato confessar que nunca o leu, a verdade é que Juan Benet continua a ser um autor secreto e intimidante, havendo poucos leitores com paciência e necessidade para se afoitarem aos parágrafos caudalosos e às oceânicas 720 páginas de “Herrumbrosas Lanzas” – livro tão lateral aos apetites literários prevalecentes que está omisso da Wikipédia.
Por conveniência editorial, que o autor artisticamente converteu em figurino folhetinesco, o livro foi publicado em 3 volumes autónomos (partes I-VI em 1983; parte VII em 1985 e partes VIII-XII em 1996) e só em 1998 saiu do prelo a póstuma edição integral, contemplando ainda as supostamente incompletas partes XV e XVI, não havendo traços das XIII e XIV em falta. A corrente edição de bolso da editora Debolsillo (ISBN: 9788499080079) traz de brinde uma carta topográfica de Region, desenhada pelo próprio Benet (de profissão engenheiro de estradas) que é uma preciosa companhia à leitura da obra.
Por uma daquelas coincidências que por vezes encadeiam a literatura, mais barrocas do que invulgares (o que confunde os idealistas, perpetuamente esperançosos de verem o dedo do transcendente a furar a casca do tangível), a história editorial de “Herumbrosas Lanzas”, no que teve de intrincada, acidentada, mas sobretudo de resoluções pragmáticas, ilustra e reflecte
a mecânica do enredo do livro.
“Herrumbrosas Lanzas” é o relato de uma ínfima e quase frívola campanha da Guerra de Espanha, desenrolada na periférica região de Region (inevitável redundância) quando as tropas e os militantes fiéis à República sediados em Region (a cidade homónima da região), lançam um assalto à franquista cidade de Macerta, através da montanha que separa os dois vales. A matéria romanesca de “Herrumbrosas Lanzas” são os planos, os preparativos, as intendências, as discussões processuais, as controvérsias bélicas e as conspirações e traições dessa campanha, havendo um bom par de batalhas expostas com a inquestionável ferocidade que nelas costuma manifestar-se. Ou seja, “Herrumbrosas Lanzas” captura o lado mais exposto da condição humana, normalmente evitado pela literatura coetânea, que prefere apascentar as personagens e as ficções pelas acostumadas vertentes da psicologia e do sentimentalismo.
Segundo Javier Marías “Herrumbrosas Lanzas” é o livro definitivo sobre a Guerra de Espanha. Desta vez é possível concordar com ele.