Do princípio ao fim (1)
No futebol existe uma frase feita, daquelas em que o desporto-rei é fértil: isto não é como começa, mas como acaba.
Na literatura, pelo contrário, o melhor raras vezes fica guardado para o fim. Começar um romance ou um conto com as palavras certas, que exprimam de forma adequada a ideia que o autor tem em vista, é o único caminho possível. Porque não existe uma segunda oportunidade para ter uma primeira impressão.
É um desafio que se coloca a qualquer forma de expressão literária. Ernest Hemingway, mestre da ficção curta, legou-nos o mais belo e pungente microconto que conheço. Tem apenas seis palavras: “For sale: baby shoes never worn.” Que podemos traduzir assim (permitam-me o atrevimento): “Para venda: sapatos de bebé. Por estrear.”
Ao longo dos anos, senti-me fascinado por diversos parágrafos de abertura de textos literários famosos. Vários desses parágrafos virão aqui, estou certo disso, seleccionados por colegas de blogue numa série colectiva que hoje começa no DELITO DE OPINIÃO. E que pretende contribuir para despertar ou sedimentar a paixão dos nossos leitores pela arte literária.
A série intitula-se Do princípio ao fim porque não destaca apenas começos de novelas ou romances: destina-se a realçar também as frases finais que elegermos entre as mais inesquecíveis.
Também irei por aí. Mas hoje fico-me por um dos mais arrebatadores inícios que guardo na memória de infatigável leitor. Simples e complexo, literal e metafórico, sugestivo como poucos. Ao ponto de nunca mais o ter esquecido.
São as palavras que nos apresentam Gregor Samsa, inscrevendo-o desde logo na galeria de personagens da literatura universal. Redigidas há mais de cem anos por um taciturno judeu da Boémia que escrevia em alemão: "Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt."
Assim entramos no universo de Franz Kafka – tão particular, tão universal, tão denso, tão límpido, tão tortuoso, tão sedutor. São as primeiras linhas da sua novela A Metamorfose (1915), erupção do irracional num mundo sujeito aos inexplicáveis caprichos do acaso, onde as sombras vão ganhando terreno no eterno combate contra a luz.
Recordo o fascínio que senti ao mergulhar pela primeira vez na prosa inconfundível do malogrado escritor de Praga, tão cedo vitimado pela tuberculose num mundo que mal despontava dos horrores da guerra. E jamais esqueci aquelas palavras que me iniciaram no imaginário kafkiano. Não por acaso, Kafka é um dos raros escritores que viu o nome convertido em adjectivo.
Reencontro A Metamorfose, em edição recente, e de novo a magia desta prosa me devolve à emoção antiga.
"Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso." (Recorro à tradução de João Barrento na versão portuguesa da editora Ulisseia, com data de 2011).
É preciso começar bem. Porque o todo está contido na parte. E porque existe uma diferença substancial entre a literatura que mal nos arranha a superfície e a que pode mudar-nos para sempre.
Eis-me a largar tudo para seguir o rasto do homem-insecto nos dédalos da eternidade fixada na palavra impressa. Como se fosse a primeira vez, como se fosse a única, como se fosse a última.