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Delito de Opinião

Do jornalismo ao jornalixo

Pedro Correia, 31.08.17

As chamadas "redes sociais" são hoje a maior rede de amplificação de mentiras no quotidiano português. Qualquer aldrabice ali posta a circular ganha eco imediato, com opiniões definitivas cavadas em trincheiras, sem ninguém cuidar da verdade dos factos.

Nos últimos dias isto ficou bem evidente na absurda polémica dos caderninhos de apontamentos pré-escolares com capas a azul e cor-de-rosa, com centenas de pessoas a pronunciar-se sobre algo que nunca tinham visto nem faziam a menor ideia do que era. Bastaram uns bitaites no Twitter para logo a bola de neve engrossar. Da "rede social" a estória saltou para todos os media e destes para um obscuro organismo oficial pomposamente designado Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, e daqui para o gabinete do ministro adjunto do primeiro-ministro, que fez um inédito apelo público à retirada desses cadernos do mercado - onde se encontravam, sem qualquer polémica, desde Julho de 2016!

 

Tudo isto em apenas 24 horas e sem que se estabelecesse uma versão contraditória: estava em curso um linchamento colectivo e ululante, passatempo favorito das "redes". Ninguém fez caso do que disse  Susana Baptista, responsável pelas publicações infanto-juvenis da Porto Editora, ninguém ouviu a autora, Catarina Águas - licenciada em Educação de Infância na Escola Superior de Educação de Lisboa -, ou as ilustradoras dos tais cadernos, Ana Valente e Rita Duque. Todas do "genero" feminino, todas profissionais respeitáveis, todas ignoradas. Como se estivesse em causa uma empresa de vão de escada e não a maior editora portuguesa, com uma reputação alicerçada em sete décadas nos domínios da pedagogia e da didáctica.

Foi preciso um humorista - neste caso Ricardo Araújo Pereira - repor a verdade dos factos para a polémica se esvaziar quase tão depressa como tinha começado. Sem carteira profissional de jornalista, ele fez o que qualquer bom jornalista deveria ter feito: apurar o que realmente se passava, sem emprenhar de ouvido.

Este episódio envergonha os jornalistas portugueses. E ajuda a explicar por que motivo todos os títulos da imprensa continuam a cair a pique, como demonstram os calamitosos números referentes ao primeiro semestre de 2017 agora divulgados pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação.

 

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Anteontem, embora com menos destaque, aconteceu uma história semelhante, também iniciada nas redes sociais. Sobre os supostos maus-tratos dados a um galo numa remota aldeia do concelho de Seia: o bicho, garantiam os arautos da pós-verdade refastelados nos seus sofás lisboetas sem nunca terem posto os pés na referida povoação, seria morto à paulada, com requintes de sadismo. Com a ave "agonizando lentamente fruto da malvadez".

Foi quanto bastou para que o PAN salivasse de indignação. A coisa meteu comunicado oficial do partido animalista, denúncias ao Ministério Público e à Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária. De imediato os órgãos de informação reproduziram tudo isto - uma vez mais, sem apurarem os factos, como mandaria a deontologia profissional.

Parecia um filme de terror. Com o ligeiro problema de ser mentira. Como a Câmara Municipal de Seia, presidida pelo socialista Carlos Filipe Camelo, se encarregou de esclarecer, desfazendo o boato. Entretanto, lamentavelmente, apenas o Jornal de Notícias tinha cumprido o dever jornalístico, estabelecendo o contraditório ao ouvir as pessoas daquela aldeia que desmentiram a atoarda sem rodeios numa peça escrita pela jornalista Madalena Ferreira (infelizmente não disponível em versão digital no momento em que escrevo estas linhas).

 

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Acontece que as redes estão-se nas tintas para a verdade. Essa "turba inorgânica", como bem lhe chama Francisco Mendes da Silva, quer indignar-se o tempo todo contra não importa o quê. Tal como os viciados em drogas duras, os junkies das caixas de comentários dos jornais - os mesmos que espalham qualquer atoarda no Twitter e no Facebook - fazem prova de vida berrando por escrito sobre assuntos acerca dos quais nada percebem, nada querem perceber e têm raiva a quem perceba.

Isto explica que as putativas agressões ao tal galo só existente na delirante imaginação do PAN tenham dado azo à habitual javardice histérica, com dezenas de pessoas disparando contra um alvo afinal inexistente.

 

Uma vez sem exemplo, aqui transcrevo algumas dessas opiniões, colhidas ao longo de 24 horas na caixa de comentários da edição electrónica do JN, para se avaliar bem o nível intelectual desta gente:

«Haja vergonha! Haja respeito por seres que sentem como nós!»

«Quais são as origens dessa barbaridade? Religião ou vudu?»

«Voltamos à idade da pedra mas da pior forma. É que nessa época matava-se para comer, agora mata-se por diversão.»

«É uma tradição de merda e já devia ter acabado.»

«Outra tradição para atrasados mentais... já não basta os doentes de Barrancos...»

«Que façam tradição com os seus familiares. Não têm que o fazer a seres inofensivos que estão ali por obrigação.»

«E que tal serem eles e a sua "tradição de caca" a levarem paulada?»

«Estes divertimentos de merda à custa do sofrimento dos animais pôem-me doente. Que tal substituir o galo pela besta (humana) lá da aldeia?»

«Sugiro para as pessoas que são a favor deste tipo de tradições seguirem a minha nova tradição: amarrar um de vocês e bater-lhes com um barrote até morrerem.»

«Podem substituir o galo pelo António Costa?»

 

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No meio deste vendaval de imbecilidades, uma  leitora ainda tentou repor a verdade: «Se há uma coisa que abomino é a falta de profissionalismo jornalístico e a política suja que se pratica no nosso pais. Para aqueles que gostam de opinar sem o devido conhecimento, informo que morte do galo é na verdade a morte do ovo: não andam à palauda ao galo mas ao ovo .»

Como era de calcular, ninguém fez caso: os "factos alternativos" são muito mais sedutores do que a verdade nua e crua.

Assim vamos andando: dispara-se primeiro e reflecte-se depois. Com o genuíno jornalismo praticamente em vias de extinção, entretanto absorvido pelas "redes". Cada vez mais travestido de jornalixo: vociferante, acéfalo, populista, irresponsável e mentiroso.

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