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Delito de Opinião

Do desvelo de certas esquerdas pelo Homem Providencial

Rui Rocha, 03.03.15

Não passa despercebido o entusiasmo com que certa esquerda embarca no delírio do Homem Providencial. O fenómeno não é exclusivo de uma determinada geografia ou de um certo momento histórico. Encontra-se a propósito de ditadores sanguinários, dos mais vulgares trambiqueiros ou de políticos correntes (se estes não forem o mesmo que aqueles) que acabam por ver as suas qualidades exacerbadas em favor não se sabe de que desígnios insondáveis (ou sabe-se). Vimos isto com chineses e norte-coreanos, com africanos e europeus, com Castro, com Obama, com Hollande, com Sócrates, com a dupla Tsipras & Varoufakis e até, por amor de Deus, com António Costa. E, se quisermos entrar no lado mais galhofeiro, com esse inesquecível arauto das bandeiras da esquerda que foi o meteórico Artur Baptista da Silva. E não quero com isto dizer que uns e outros e tantos outros sejam comparáveis. Afirmo, apenas, que o mecanismo de descolagem da realidade de certa esquerda que os vê estratosféricos é, esse sim, semelhante. Ora, pela sua recorrência, o fenómeno deve ter uma explicação. Na verdade, creio que tem duas. Uma que se aplica à ilusão da esquerda pelos homens providenciais totalitários e outra que explica o desvelo da esquerda por supostos homens providenciais em democracia. Comecemos por esta última. A benefício da compreensão do que afirmo é importante salientar que o modo natural da esquerda é a revolução. Ora, a democracia, concretizada em actos eleitorais periódicos, é a antítese da revolução. A sucessão de lideranças, de propostas políticas, a alternância, o consenso, o debate, acabam por confluir para soluções tipicamente evolutivas ou involutivas (mas sempre na continuidade) e não revolucionárias. Privada em democracia do seu ecossistema revolucionário natural, certa esquerda entrega-se nos braços do Homem Providencial (que tudo pode, que tudo sabe, que apresenta a única mensagem verdadeira) para sublimar a frustração, a angústia existencial que a contenção e equilíbrio de um sistema democrático lhe provoca. Em regimes totalitários, a coisa tem a mesma natureza, com as devidas adaptações. Aí, a angústia decorre também da ausência da possibilidade da revolução. Ou melhor, o líder totalitário, que assume em teoria e na prática o dom da infalibalidade, é o melhor sucedâneo da revolução na impossibilidade desta (melhor do que a democracia, já se vê), valendo por aquela em forma de Homem Providencial. Vale isto por dizer que a fixação de certa esquerda em elevar seres humanos banais, ou muito pior do que isso, à categoria de santinhos milagreiros, não é um sinal de infantilidade intrínseca ou de uma visão pueril da realidade. É, mais do que isso, um sinal de desconforto e inadaptação do adn revolucionário à essência do ambiente democrático. 

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