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Delito de Opinião

Do Barómetro Moral do Sul

jpt, 12.03.22

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(Texto no meu Nenhures, sobre as simpatias pelo regime de Putin que encontro em Moçambique. Pode ser que aqui alguém se possa interessar pelo assunto, ainda que algo excêntrico ao Delito de Opinião)

Em Moçambique muitos louvam - "compreendendo" (justificando) - a "operação militar especial" (sic) russa na Ucrânia. Essa adesão surpreende-me. Até por habitar num país que nos últimos 50 anos sofreu uma guerra de independência contra Portugal, uma "operação militar especial" da Rodésia e a demorada intrusão militar da África do Sul. As razões para esta suspensão da inaceitabilidade de invasões estrangeiras serão várias: 

1) Alguma russofilia, um mero atavismo, "sobrevivência" das adesões bipolarizadas da era da Guerra Fria - a qual em Moçambique nada teve de "Fria" nem mesmo de "baixa intensidade", como foi então costume chamar aos "conflitos" que daquela derivavam. E é estranha pois também se encontra em jovens, que não moldaram as suas mundividências nessa época. Tendo maturado à revelia de qualquer movimento comunista - desde há muito inexistente no país - ou de qualquer intervenção relevante da Rússia (pós-soviética) enquanto país "doador".

Neste rumo alguns têm uma retórica mais burilada. Surgem como se sob matizada "adesão compreensiva" aos objectivos russos. São os crentes na metafísica dialéctica: julgam positiva qualquer aparente antítese à aparente tese norte-americana, pois contributo para uma síntese virtuosa. Na maioria são literatos advindos do “espectro do comunismo”, mas pouco lhes importa que o actual poder russo seja fascista - pois, para além dos detalhes que os oriundos da Ciência, Teoria ou Filosofia Política queiram esmiuçar, o regime de Putin é abarcável pela ideia de "Ur-Fascismo" de Umberto Eco.

Isto tende para a "justificação" – por relativa que seja - da invasão russa, por razões geoestratégicas ou histórico-culturais. O que advém da verrina antieuropeia e, acima de tudo, na refutação das democracias liberais. É a renovação do (até suicidário) ideário comunista consagrado no período prévio à II Guerra Mundial: a invectiva ao "social-fascismo", a desconsideração da democracia que veio a ser dita "formal".

Esse é um viés a la Comintern também ressurgindo no Portugal actual - como intenta a amálgama de Pacheco Pereira em "É fácil atirar contra o Chega bruto, o de Ventura, mas achar graça ao Chega sofisticado do Observador". Aliás, nesta rota russófila moçambicana nota-se a influência de discursos portugueses, dada a globalização da informação e de alguns eixos de interacção académica.

2) Também muitos rejeitam que se dê relevância a esta agressão russa. O que é uma refracção da influência das teorias “pós-coloniais". Nestas (quase) sempre se elide o colonialismo, passado e presente, de contiguidade geográfica - como nas actuais China, Indonésia ou Rússia. Pois centradas nos colonialismos ultramarinos, muito por efeito dos processos de afirmação no mercado universitário global dessa corrente teórica.

Esta apropriação pobre baseia-se na ideia de o regime colonial "ocidental" ter implicado a desumanização (indignificação e desconsideração) dos colonizados. E culmina numa visão da actualidade, dita pós-colonial, onde os "ocidentais" - os da Europa, agora estendida ao conjunto não-russo, dos EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia; e, para os que estudaram no Brasil, os "brancos" da América Latina - são neocolonialistas, mantendo-se a desumanizar os ex-colonizados. É, diga-se a latere, uma visão cristalizada da história, do “sistema-mundo”, consagrando a imutabilidade das sociedades ditas “ocidentais”, seus princípios norteadores, seus interesses e estratégias predominantes e até seus conteúdos sociológicos. Para além de expressar a crença na irrelevância dos debates intelectuais nelas ocorridos desde há, pelo menos, um século.

E essa mumificação proclama que os poderes económicos, políticos e culturais “ocidentais” se congregam para impor uma mundividência, homogénea, subordinada aos seus interesse: um “Barómetro Moral”, do “Norte”. Mascarado de universalismo, assim falsário pois esconde a realidade de uma desatenção pelas maleitas, conflitualidades e explorações (e as tais “desumanizações”) sofridas pelo “Sul”, muito em especial as africanas. As quais, aliás, são responsabilidade desse “Norte”.

3) Agora esta via argumentativa considera que a angústia “ocidental” diante da invasão russa da Ucrânia, a relevância que lhe é dada nas relações internacionais, é cabal demonstração da “hipocrisia”, “racista”, “branca”, desse propalado universalismo do “Barómetro Moral do Norte”. Repudiando a verdadeira relevância desta guerra devido à indiferença “ocidental” – política e informativa – diante dos conflitos africanos. E isto não é mero rumorejar da vox populi, é discurso de intelectuais e na imprensa.

Ou seja, a (para mim) surpreendente suspensão da inaceitabilidade de invasões estrangeiras em Moçambique, esta mais ou menos explícita ou sentida russofilia, é eco da aversão pela peçonha dos ocidentais. E, em muitos casos, pura e simplesmente pelos brancos - mesmo que de modo paradoxal (sob o pobre racialismo ali vigente não serão os “russos” classificáveis como “brancos”?). É um desdém pelo tal propalado falsário "Barómetro Moral do Norte", esse que nós-para-sempre-colonos quereremos impor. 

*****

Não abordo a pertinência das teorias “pós-coloniais”. Nem a das suas simplistas refracções, militantes do agora dito "activismo". Mas face a esta invectiva aos “ocidentais” por sobrevalorizarem a invasão russa enquanto descuram os conflitos em África, prefiro entrar em registo de observação-participante. E por isso me alongo: 

Comecei a blogar em 2003. O meu ma-schamba foi o primeiro blog em português em Moçambique. Antes conhecera dois ou três anglófonos, de voluntários e missionários estrangeiros, sitos nas províncias. Decorreram anos até surgirem blogs nacionais: o que aconteceu pelo impacto do Ideias Para Debate, do Machado da Graça (a quem ensinei a usar a plataforma blogspot), e depois do Diário de Um Sociólogo, de Carlos Serra (ao acalentei o seu desejo blogal). Anos depois, e com a ajuda de Paulo Querido - dono da plataforma weblog.com.pt -, fiz o ma-Blog, um directório com dezenas de blogs em Moçambique, notificando todas as actualizações. Depois, com Vítor Coelho da Silva, passei-o, sempre crescente, para o PNETMoçambique, activo durante anos.

Nesses directórios, tal como no meu ma-schamba, coloquei ligações a fontes noticiosas sobre África: de ong’s, instituições multilaterais, agências noticiosas, jornais - p. ex. AllAfrica, Global Voices, Mail & Guardian – na sua esmagadora maioria oriundos de contextos passíveis de serem ditos “ocidentais”. Pois eram tempos de menor acesso à comunicação social digital. E porque era óbvio o défice em matérias africanas na imprensa moçambicana. Tal como, e muito, no bloguismo nacional. Sendo que o mais politizado deste se centrou nas temáticas endógenas, alheado das temáticas continentais -como a guerra no Congo ou o rumo da então propalada “integração regional” austral. Depois, a era blogal foi ultrapassada pelas "redes sociais". No país logo se popularizou o Facebook que acolheu aceso debate sobre as temáticas nacionais, mas também “distraído” de África.

Em finais de 2017 visitei o país. Pouco antes acontecera o primeiro ataque no Cabo Delgado, efectuado pelos ditos "insurgentes". Regressado a Portugal, sobre essa nova guerra postais logo escrevi no Delito de Opinião, que congrega alguns milhares de visitantes diários. Procurando chamar a atenção para a evidência que se avizinhava. 

18 e 19 decorreram. No Cabo Delgado houve várias movimentações dos guerrilheiros acoplados ao fascismo islâmico – ou por este acobertados. Mas no país não houve debate. Nem rebate. Foi óbvia a mudez: do poder político, de âmbito nacional ou provincial, da oposição partidária, das organizações de sociedade civil, da "comunidade internacional" e na imprensa. É certo que alguns investigadores académicos vieram atentar no assunto. Mas instalou-se um real silêncio social – não absoluto, claro, pois é impossível afirmar isso no actual mundo comunicacional rizomático. Acima de tudo, pois é desse que me ocupo aqui, foi notório, tonitruante o silêncio dos cidadãos “fazedore de opiniões” nas redes sociais - intelectuais, académicos, jornalistas. Pois, e durante anos, as movimentações dos chamados "insurgentes" não animavam grande fluxo discursivo. 

Espantado, irritado, com tamanho absurdo, entendi então utilizar um grupo de Facebook que criara há anos, o Nenhures - que usava para colocar ligações aos postais dos blogs em que vinha escrevendo desde há anos. Pois estes grupos-FB têm a vantagem de poderem alojar documentos, bem como de neles se poder agregar os postais por tópicos. E naquele grupo – até porque com 8000 inscritos, no qual um texto com facilidade atinge as 3000 visualizações - passei a colocar ligações a textos sobre o conflito de Cabo Delgado. E ficaram ali 87 referências a textos sobre essa realidade (de longe o tópico com mais entradas naquele grupo que tem mais de uma década).

Em 2020, devido a uma continuidade dos conflitos no Cabo Delgado, esse relativo silêncio foi sendo ultrapassado, tanto no país como no estrangeiro. Em finais do primeiro semestre do ano o tema "Cabo Delgado" vingou nas agendas públicas da política e nas redes sociais e na imprensa. Sinalizo essa eclosão da preocupação pública com o surgimento, em Junho de 2020, dois anos e nove meses depois do início das hostilidades terroristas, da intervenção dos renomados escritores moçambicanos: Luís Carlos Patraquim e Nelson Saúte - este publicou "Os Mortos de Muidumbe". Enfim, o crescendo de atenção sobre a situação no Cabo Delgado foi notório e deixei de me ocupar com o trabalho de divulgação dos textos significativos que - amigos, colegas e "amigos-FB" - me iam dando conhecimento, pois esse meu modesto contributo para a reflexão sobre a questão já não se justificava. 

Porquê este longo memorialismo, uma justificação da minha proclamação de "observação-participante"? Pura e simplesmente porque durante dois anos e tal não encontrei estes tipos que agora andam a grasnar contra o hipócrita "Barómetro Moral do Norte" – o qual dizem pretensamente universalista mas descurando as maleitas africanas - a falarem do que se passava no norte de Moçambique. Nem falando, nem questionando, nem protestando, nem opinando. Num conflito que não é apenas em "África", é mesmo no seu próprio país. Tal como nunca, durante já duas décadas de vigência de globalização digital – e mesmo com o meu modesto contributo divulgador de fontes – os encontrei debruçados sobre os inúmeros conflitos “africanos”.

É assim óbvio que o seu (deles) Barómetro Moral do Sul - depurado da "nossa" hipocrisia, racista, branca, de falsário universalismo disfarçada - estava avariado. Repito, nem no próprio país atentaram. Quanto mais na sua vizinhança continental. Apenas acenam as patéticas críticas à “desatenção” (particularista) dos falsários universalistas “brancos”.

Se eu fosse dado a pensamento sistémico, elevado, eu apelaria a antigos mestres, célebres na minha juventude (dependentistas, Samir Amin et al), e diria que estas invectivas a propósito da "nossa" atenção, indignação e acima de tudo preocupação, com a invasão russa da Ucrânia não é mais do que o paleio de nichos, literatos e universitários, da "burguesia compradora", que usa as retóricas "pós-coloniais" para nessas invectivas ao "estrangeiro" "Norte" se legitimar no sistema de desigual redistribuição de recursos societais, nisso praticando uma desatenção desumanizadora de largo espectro dos seus compatriotas, no que configura um efectivo colonialismo interno.

Mas eu não sou dado a pensamento sistémico, não tenho essa elevada capacidade intelectual. Sou muito mais, passe a grosseira utilização do termo, adepto de uma fenomenologia. Sou um mero avatar, real, de Jimmy McClure. E ao ler estes "pós-coloniais" da treta, a invectivarem os "ocidentais", ancorados no seu avariado "Barómetro Moral do Sul", cuspo o tabaco que estou a mascar, bebo um gole de aguardente e subo até à colinazita vizinha, sempre na expectativa de ver chegar o Mike (S. Blueberry), vindo para me levar numa nova qualquer aventura. Durante a qual eu não lerei estes hipócritas...

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