Disparar com excesso de rapidez
1
O ministro da Cultura, que terá recebido instruções de António Costa para sair do doce recato em que permanecia há 15 meses, deu enfim prova de vida política. Mas não da melhor maneira. Em dois dias seguidos, colidiu com os deputados da comissão parlamentar de inquérito à TAP e com o seu colega da Administração Interna.
Num caso esteve quase bem, noutro esteve muito mal. Sem perceber, de qualquer modo, que se contradizia por completo nas duas intervenções públicas.
2
Esteve quase bem quando saiu em defesa da liberdade de expressão a propósito do controverso ataque em forma de desenho satírico aos agentes da polícia, apontados como potenciais homicidas racistas na televisão do Estado.
A liberdade editorial dos cartunistas deve ser irrestrita: sempre pensei assim e continuo a pensar. Mesmo quando a sátira ofende, é de mau gosto e estigmatiza um sector socio-profissional, como as forças de segurança. Adão estaria bem, sem o advérbio quase, se não entrasse em polémica pública com José Luís Carneiro: nem parece que se sentam ambos no Conselho de Ministros.
Outra trapalhada absolutamente desnecessária. Esta, certamente Costa não lhe agradeceu.
3
Esteve muito mal ao esgrimir contra os deputados, esquecendo-se de um princípio fundamental do Estado de Direito: o Governo é responsável perante a Assembleia da República, devendo-lhe respeito institucional. Além disso, sendo membro do Executivo, viola o sagrado princípio da separação de poderes - outro pilar das democracias liberais - ao ter dito o que disse.
«Os deputados são uma espécie de procuradores do cinema americano de série B da década de 80. Isto contribui para a degradação da imagem da democracia», declarou Adão e Silva em entrevista à TSF, talvez nostálgico dos dias em que ganhava a vida como tudólogo do comentário bem remunerado na televisão, na rádio e nos jornais. Agora em dura crítica aos parlamentares que se atreveram a fazer perguntas incómodas na sede própria, agindo como representantes dos eleitores.
Ironicamente, o mesmo ministro que sai em defesa da liberdade de expressão para os cartunistas ataca o exercício dessa mesma liberdade pelos deputados. Uma coisa não cola com a outra. Acontece a quem dispara mais rápido do que a própria sombra após longa hibernação mediática.
Faz lembrar o que cantava Sérgio Godinho nos idos de setenta: «Só quer a vida cheia quem teve a vida parada.»
4
Quem esteve muito bem - este sim - foi o deputado socialista António Lacerda Sales, ex-secretário adjunto da Saúde e presidente da comissão parlamentar de inquérito à TAP. Reagindo às farpas lançadas pelo titular da Cultura.
Em dois momentos.
Primeiro, afirmando isto à Lusa: «Parece-me uma falta de respeito pelo trabalho dos senhores deputados, da comissão e do próprio parlamento. Relembro que o Governo responde ao parlamento. Nenhum político está isento de respeitar as instituições, por maioria de razão o parlamento, especialmente os ministros.»
Depois, acentuando isto à Antena 1: «Os membros do Governo, mesmo quando se sentam à mesa do café ou em esplanadas, nunca se devem esquecer que são membros do Governo.»
Parafraseando aqui o que disse António Costa em Abril de 2016, quando afastou do Governo, por delito de opinião, João Soares - um dos antecessores de Adão e Silva. O primeiro-ministro é mesmo assim: molda os princípios às conveniências da sua geometria política, sempre muito variável.
5
Lacerda Sales merece aplauso. Defendeu a instituição parlamentar e deu uma bofetada metafórica ao ministro impertinente.
De luva branca, claro. São sempre as que doem mais.