Dias laus (3)
“E por que razão estar em silêncio na companhia do outro haverá de ser sempre um sinal de aridez e de distância?” – Claudio Magris, Instântaneos
Ontem, quando abordei o pequeno-almoço, sem nada planeado, que é uma vantagem quando não se depende da programação dos guias, caía uma chuva miudinha que obrigou a que as espreguiçadeiras de madeira junto à piscina fossem todas cobertas com um oleado. Com o avançar da manhã a chuva tornou-se mais intensa. Aproveitei para ler mais alguma coisa, pensar no que iríamos fazer e pedir os jornais do país.
A leitura diária da imprensa dos países e cidades por onde passo é incontornável. Normalmente procuro obter os dois ou três jornais mais importantes para lhes tomar o pulso. Mesmo em locais onde a liberdade de imprensa é controlada, ainda que de formas veladas, e a influência dos partidos de governo e/ou dos militares é permanente, normalmente encontram-se nichos de informação e opinião livre. Pelo menos até que os encerrem, como aconteceu há tempos com o magnífico Cambodia Daily, cujo lema era “All the news without fear or favour”, e que ao fim de mais de duas décadas de publicação ininterrupta o ex-khmer vermelho de Phnom Penh reciclado para a democracia, mas a quem rapidamente estalou o verniz, mandou encerrar. Na Tailândia não perdoo a leitura do Bangkok Times, um jornal a todos os títulos magnífico e que aquando da alteração das leis eleitorais e dos partidos, em Dezembro passado, quando por lá andei, publicou diariamente notícias e artigos de opinião, esclarecendo em termos claros e objectivos as manobras que estavam a ser preparadas com vista às próximas eleições e qual o alcance das modificações que os militares pretendiam introduzir. Foram peças de jornalismo de antologia, razão pela qual, para desespero da minha mulher, guardei os vários exemplares, juntando a muito mais que vou acumulando de diversos países. O The Nation é outro interessante jornal tailandês. No Laos entregaram-me o Vientiane Times, em língua inglesa, e rapidamente percebi que aquilo não passava de uma folha panfletária de elogio ao Governo e às suas políticas visando a captação de investimento estrangeiro, pelo que a leitura da imprensa ficou arrumada por uns dias.
Quando a chuva parou resolvemos dar uma volta pela cidade e aproveitámos para visitar o antigo Palácio Real, transformado em museu, e subir ao topo do monte Phu Si.
O Palácio tem um horário de visita estranhíssimo. Abre às 13:30 para encerrar às 17:00. Os sapatos ficam à porta. E não se permite a recolha de fotografias no seu interior. Vá-se lá saber porquê, mas é coisa que não estranho em países governados por castas para as quais tudo deve ser secreto e constitui segredo de estado. Como se lá houvesse algum tesouro transcendente. Construído em 1904, foi residência do Rei Sisavang Vong, cuja figura surge imponente logo à entrada dos jardins de acesso. Seria deposto em 1975 pelo Pathet Lao, só que nessa altura já ali não residia. Os quartos têm uma decoração austera mas com gosto, tendo eu notado as belas camas de madeiras nobres dos quartos do monarca e da sua mulher, o espaço e as vistas de alguns aposentos para o Mekong.
Há vitrines com trajes tradicionais usados pela família real, porcelanas de Limoges, condecorações e ofertas de países estrangeiros. No anexo fica a garagem onde estão os carros usados pelo Rei, mas que também não se podem fotografar (dois Lincoln Continental da década de 60, um Edesel Citation de 1958 e um Citröen igual ao que ficou no texto anterior. Tanto no Palácio como nos muitos templos que visitei a tarifa é normalmente de 10 ou 20 mil Lao kips (1USD equivale a cerca de 8.260 Lao kips), havendo um ou outro local em que são cobrados 5.000.
O Monte Phu Si fica do lado oposto ao Palácio Real, constituindo um dos pontos de romagem da cidade, depois de subidos os mais de 300 degraus que nos conduzem ao That Chomsi, um stupa com 24 metros e uma cobertura dourada erguido em 1804. Em dias claros a vista que daí se alcança abrange toda a cidade e os diversos braços dos rios (o Mekong a norte, o Khan a sul e a leste), assim como as montanhas circundantes, parecendo que a zona central da cidade forma como que uma península entrando pelos rios e vigiada pela colinas.
Vaguear sem sentido pelas cidades a que chego, sentindo o seu pulsar, olhando apenas para o movimento e para as pessoas, tomando um café aqui e ali, quando possível entabulando diálogo com um ou outro residente local para melhor me aperceber da realidade onde estou, das suas preocupações e anseios, é uma das actividades a que com gosto me dedico. Tenho conhecido gente interessantíssima, fugindo à informação turística habitual, inteirando-me de outras realidades que não vêm nos roteiros turísticos nem fazem parte das preocupações dos guias profissionais.
Luang Prabang é um óptimo local para passeios no Mekong, visitar quintas e centros de conservação da natureza, fazer passeios a pé, de caiaque, de jipe ou de elefante, mas estes últimos não são da minha predilecção. Os animais são para estar em liberdade, na natureza onde pertencem, tranquilos e fazendo a sua vida, e não para sessões de “selfies” em comícios de megafone com hordas de excursionistas.
Como o tempo tivesse entretanto melhorado, e sem saber o que os dias seguintes me reservariam, aproveitei para dar um passeio no rio, ao final da tarde. Confesso que esse foi um dos momentos mais fantásticos que me foi proporcionado.
Numa embarcação pequena foi possível subir e descer os seus meandros, observar a cidade de outros ângulos, bem como a vida nas suas margens, com os pescadores na sua rotina, lançando e recolhendo redes, enfim, desfrutar de um belíssimo final de tarde, vendo o Sol esconder-se entre as montanhas enquanto nós vagarosamente o procurávamos, embalados pelo silêncio e uma música suave que o capitão achou por bem colocar no ar enquanto nos oferecia uns magníficos mojitos. Majestosos, o Mekong e o Khan resolveram associar-se ao momento. Quase parados arrastaram-nos dolentemente por mais uma curva, depois por mais uma reentrância, contornando montanhas, seguindo a passarada, até o dourado das cúpulas dos stupa desaparecer com o cair da noite e nós regressarmos para o jantar no final de mais um dia de silêncio, de paz, de imersão na outra parte de nós.