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Delito de Opinião

Dias inteiros sempre a chover

Paulo Sousa, 17.12.20

Lembro-me de ser pequeno e ouvir com frequência queixas atormentadas com medo do fim do mundo. Os mais antigos, mais devotos e mais “tementes a Deus”, garantiam com quantos dentes tinham (e que só eram abundantes quando postiços) que se durante o dilúvio bíblico Deus tinha recorrido à água para nos castigar, da próxima vez recorreria ao fogo. Daí até à terceira guerra mundial e ao holocausto nuclear era apenas um saltinho do tamanho de um copo de abafado. Por não conseguir argumentar que a confirmar-se esse caso, talvez os comunistas cumprissem algum desígnio divino, ficava apenas com medo. O sentimento generalizado era de que antigamente é que era bom. Mesmo com a guerra e a fome nada era comparável ao Apocalipse em forma de cogumelo.

Os anos foram passando, foram assinados tratados de não proliferação nuclear, reduziu-se o arsenal do Juízo Final e finalmente pudemos respirar de alívio.

Ainda estávamos a inspirar livre e profundamente pela primeira vez, e logo começámos a ser flagelados pelas notícias do buraco no ozono. A culpa era dos aerossóis e dos gases CFC que existiam também dentro dos frigoríficos e dos ares condicionados. Sem a protecção do ozono seríamos cozinhados pelos raios ultravioleta. No melhor cenário os cientistas garantiam cancros na pele para todos, sem apelo nem perdão. O sentimento generalizado era de que antigamente é que era bom. Mesmo com a ameaça da guerra nuclear, nada era comparável a ser transformado em torresmos.

Os CFCs foram banidos e retirados do mercado e, para gáudio de toda a vida na terra, em poucos anos as medições feitas pelos satélites garantiam que o buraco do ozono estava bem menor.

Quando nos aliviámos pelo fim de mais esta ameaça, o novo fim do mundo passou a ser o efeito de estufa e o aquecimento global. Depois de uns invernos com frio de rachar, a ameaça terá ido ao registo civil e passou a chamar-se Mudanças Climatéricas e Fenómenos Extremos. Quase como que uma revelação do fim dos tempos, chegou a nevar em Évora. Era um fenómeno nunca visto em mais de cem anos. Ninguém perguntou como é que poderia ter nevado em Évora no século XIX, mas o sentimento generalizado era de que antigamente é que era bom. Pelo menos podíamos andar de carro à vontade, sem nos sentirmos culpados de cada redução de caixa para fazer uma ultrapassagem. Pior que saber que a carga fiscal de cada litro de gasolina ascendia aos 70%, era saber que íamos morrer asfixiados e cozidos a vapor.

Mais ou menos na mesma altura ainda houve tempo para aterrar o mundo com o bug do ano 2000, também conhecido pelo Y2K bug. As datas em informática tinham sido criadas numa base de seis dígitos, DDMMAA, e o ano 2000 iria ser confundido com o 1900. O cálculo de juros de um dia poderia ser transformado num século, e mesmo quem não estava endividado temia o caos que seria desencadeado pela queda dos satélites, que começariam a chover em cima das nossas cabeças, e aquilo era coisa para aleijar. Antes ser cozido a vapor do que levar com um satélite no cachaço. Fonix! 

Durante cada um destes tormentos o sentimento foi sempre de que vivíamos tempos mais ameaçadores do que os vividos no passado.

Eu acho que isto se deve a que a nossa memória de ameaças passadas seja minimizada pela ameaça presente. A ameaça actual é que é efectiva, as outras já lá vão. Tudo aponta para que, neste jogo de sobre-avaliação das dores potenciais, acabamos por não saborear devidamente as garantias do presente.

A pandemia em curso mete no bolso qualquer dos terrores de outros tempos. Nós é que estamos a sentir os efeitos e isto ainda vai piorar. O futuro nunca foi tão incerto, até porque o futuro no passado nunca se comparou ao futuro da actualidade. Além disso, a pandemia é só mais uma camada em cima das Mudanças Climatéricas. Os octogenários da minha terra garantem com quantos dentes têm (e que só continuam a ser abundantes se forem postiços) que nos invernos de antigamente chovia durante dias e dias seguidos, sem parar. Olhando para as medições pluviométricas deste início de Dezembro, as crianças que hoje frequentam a primária poderão garantir o mesmo quando também forem octogenárias. Só não sabemos se nessa altura terão ou não próteses dentárias.

A ansiedade e a incerteza matam mais que o Covid. Usufruamos pois dos pequenos prazeres, dos momentos em que não temos dores físicas, de quando nos aquecemos com um café, de quando saboreamos o sol na testa, de quando somos prendados pelos sons da natureza ou apenas pela ausência de ruído. Saboreemos a vida, em vez de sofrer por antecipação.

E não tenhamos dúvidas que, passada esta, a próxima ameaça será a mais assustadora de sempre.

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Foto de Irene Pereira tirada no Parque Natural Serra de Aire e Candeeiros a 15 de Dezembro de 2020

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