Cadernos de um enviado especial ao purgatório (21)
Um texto brilhante de João Gonçalves, a propósito de personagens de John Le Carré. A traição, o grande tema do escritor britânico, é um enigma difícil de compreender e reproduzo a impressionante frase de George Smiley, citada no texto: “Você é uma boa pessoa, leal e discreto, como é que não o demitiram?”
Excelente pergunta. Através de Smiley, Le Carré capta o mundo de sombras onde a lealdade foi sacrificada a cálculos distorcidos, onde trair se tornou um jogo trivial e a verdade se esconde no nevoeiro de mil enganos. Mas este mundo de espiões não é mais do que uma analogia do nosso próprio mundo. A ambiguidade e o efémero comandam as relação entre as pessoas. Valores como lealdade são hoje pouco valorizados, os nossos amigos são descartáveis, em nome das vantagens tácticas e da visão de curto prazo. Enganar tornou-se um vício, o desprezo pelo outro é a norma, até à desumanização, se isso for necessário para preservar as pequenas ilusões do poder.
Smiley é um símbolo daqueles, raros, que sendo traídos buscam mesmo assim fragmentos de uma verdade. “São homens de mundos abolidos”, escreve João Gonçalves, “ainda há alguns, poucos, por aí dispostos a tentar e a fracassar. E a tentar de novo e a fracassar melhor”.
Tal como esses poucos, julgo que as personagens desencantadas de John Le Carré acabam por ter razão. Perdem perante os hipócritas, perdem sempre, mas no fundo também vencem. A realidade é mais forte do que a mentira, a traição e o engano não passam de doenças contagiosas que, depois de enfraquecerem a sociedade, acabam por se extinguir, num fútil apodrecimento.
