Cadernos de um enviado especial ao purgatório (7)
Num dos primeiros grandes filmes da nouvelle vague francesa, Les 400 Coups, dois rapazes roubam uma fotografia da actriz sueca Harriet Andersson, num cinema onde passa o filme de Ingmar Bergman Monica e o Desejo. A película de François Truffaut, de 1959, em português Os 400 Golpes, contava a história de um adolescente e da sua busca da liberdade, mas a narrativa semi-autobiográfica usava uma nova maneira de abordar as personagens, sem lhes atribuir motivações evidentes, ao contrário da norma nas produções de Hollywood. Em resumo, a nouvelle vague utilizava um realismo próximo da vida, onde a acção era menos previsível e a complexidade das personagens mais elaborada. A arte continuava a enganar os sentidos, mas de maneira subtil. Podemos tentar explicar o motivo do furto da fotografia, homenagem ao mestre sueco, a um filme brilhante, a uma actriz devastadoramente bela, piscar de olho ao cinema europeu, anúncio de ruptura estética, o que quisermos, pouco importa, é um roubo justificado. Truffaut consegue um pequeno momento transcendente e a ligação com todos os rapazes que também um dia sonharam em roubar a fotografia de Mónica e o Desejo. Foi esta magia que se perdeu no cinema contemporâneo. Agora, não há segredos nem minúsculas preciosidades praticamente ocultas, que cabe a cada um de nós encontrar e decifrar; não há poesia, apenas citação.