Diário do coronavírus (9)
Quando tantos de nós fomos condenados a esta espécie de prisão domiciliária, ainda antes da imposição do inédito estado de emergência, percebi que muita gente amiga se congratulava - dentro da lógica de que devemos ver sempre o que possa haver de bom naquilo que é mau. Gente que se sentia animada por «ter finalmente oportunidade de passar mais tempo em casa», por poder «fazer coisas para que costuma faltar a disponibilidade e a paciência», por «conseguir enfim pôr as leituras em dia».
Afinal, decorridas sete semanas, vou verificando que muitas destas metas ficaram pelo caminho. Porque as pessoas não conseguem desligar-se da necessidade de estarem sempre "conectadas com o mundo", seja lá isso o que for. Porque, mesmo fazendo dieta alimentar, são incapazes de fazer uma dieta de notícias - quase sempre as mesmas, e agora sobre um tema só, repetido até à exaustão dia após dia e trazendo a palavra "morte" sempre a reboque para suscitar o pânico, indutor de gordas audiências. Porque, em matéria de leituras, optam quase em exclusivo por navegar horas sem fim nas chamadas "redes sociais", lendo sobretudo o lixo, reencaminhado pelo cunhado da prima do vizinho da conhecida.
Contra a corrente, imponho a mim próprio uma rigorosa selecção de consumo noticioso. Só escuto quem comprovadamente merece ser escutado, dispenso os sermões dos novos tele-evangelistas agora em voga, mudo de canal assim que me soa a propaganda seja do que for, reservo um tempo máximo para o fluxo informativo. Que, pelo que me vou apercebendo, equivale ao tempo mínimo para muitos outros.
Passo ao lado das opiniões arrebanhadas das "redes sociais", não consumo nem partilho os incontáveis memes que me chegam das mais diversas proveniências, não gasto um minuto com "cenários" que reproduzem outros "cenários", quase sempre de teor apocalíptico, em obediência à mesma lógica de alinhamento dos telediários cá do burgo. Há três meses, ninguém era capaz de prever o que tem vindo a suceder em toda a parte e a directora-geral da Saúde até comunicava ao País que «não há grande probabilidade de um vírus destes chegar a Portugal». Para quê, portanto, dar dois tostões pelo papo furado de tudólogos em risco de desemprego?
E, sim, vou conseguindo pôr leituras em dia. Não a "leitura" de vídeos com gatinhos ou das novivelhas anedotas a circular na Net. Nestas sete semanas li doze livros completos - não incluindo, portanto, trechos ou capítulos seleccionados de outros. Sete de autores nacionais, prosseguindo a maratona iniciada há quase um ano. E romances ou novelas que há muito constavam da minha lista de prioridades - títulos como Longe da Multidão, de Thomas Hardy, A Tia Julia e o Escrevedor, de Vargas Llosa, ou O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena.
Verifico agora que cinco destes doze foram releituras. Confirmando uma tendência que tem vindo a acentuar-se: gosto cada vez mais de revisitar livros que noutras épocas me tocaram por algum motivo que pode ou não repetir-se. E elaborando a minha lista muito pessoal de clássicos, sem necessidade de que outros me debitem cânones. Com a certeza antecipada - como garantia Italo Calvino - de que «um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer».
Assim consigo, em boa parte das horas destes meus dias de recluso, colocar o Covid-19 numa prateleira de difícil acesso. Parafraseando o outro, há vida para além do vírus.