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Delito de Opinião

Diário do coronavírus (6)

Pedro Correia, 03.04.20

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Estado de emergência? Que estado de emergência? Há um mês que não via tanta gente na rua. E até o famigerado "estacionamento em segunda fila" - nome elegante para parqueamento selvagem, à margem das regras - regressou à Avenida da Igreja, como se estivéssemos num filme a andar para trás.

Operários executam obras na via pública, em atmosfera de estrita normalidade e sem o menor respeito pela regras de distância sanitária em vigor. Os cordões higiénicos que a Câmara Municipal de Lisboa decidiu colocar há dias, da noite para a manhã, foram arrancados em todos os bancos de jardim e de rua por onde circulo, não faltando pessoas ali sentadas, algumas até em amena cavaqueira.

Vejo muito mais transeuntes de máscara. Mas abunda quem não saiba ou não queira usar as ditas como deve ser. Uma senhora comerciante está de máscara 3M, mas mantém o nariz de fora. Chamo-lhe a atenção para o facto. Resposta pronta: «Tenho de estar assim, senão falta-me o ar e nem consigo respirar.»

 

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Emergência à portuguesa, pois. Uma para consumo oficial, plasmada nas palavras solenes e graves do Presidente da República e do primeiro-ministro. Outra, a do País real - que salta à vista nesta sexta-feira que antecede a mais insólita Semana Santa das nossas vidas. 

Encontro aberta uma loja de reparação de electrodomésticos. Anoto os contactos. Dá imenso jeito numa fase destas, de reclusão sine die. Se nos avaria um fogão, um frigorífico, uma máquina de lavar ou até um esquentador ficamos com o quotidiano doméstico virado do avesso e a quarentena forçada torna-se ainda mais penosa. 

 

Dizem-me que a partir de agora haverá "controlo rigoroso" da aplicação das normas decretadas pelo Chefe do Estado e especificadas pelo Governo - com coimas e até detenções por crime de desobediência neste tempo de supressão de direitos em atmosfera de quase unanimidade nacional. Incluindo o exercício dos direitos constitucionais à greve e à resistência, tornados letra morta pelo menos até 17 de Abril. Sendo previsível que a anómala situação em curso, superiormente justificada pelo combate à pandemia, seja prorrogada pelo menos mais uma vez. E outra. E talvez outra ainda.

Só me interrogo sobre a falta de coerência evidenciada pelo Governo, que por um lado endurece o discurso, ameaçando com detenções, e por outro abre as portas dos estabelecimentos prisionais, alegadamente para evitar a propagação do coronavírus lá dentro: os cidadãos que a partir de agora forem detidos beneficiarão também de perdão de penas, de um regime especial de indulto e da antecipação da liberdade condicional, à semelhança do que sucederá com cerca de 10% da actual população prisional?

Interrogo-me ainda se estas medidas, que a ministra da Justiça justifica por serem «fundamentais para proteger a saúde dos reclusos e de todos os que exercem funções no sistema prisional», não deveriam aplicar-se, por maioria de razão, aos impropriamente chamados "lares de idosos", onde já se registam centenas de casos de Covid-19. Que lógica nos leva a soltar delinquentes enquanto mantemos os velhos em reclusão ao abrigo da mesma emergência sanitária?

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