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Delito de Opinião

Diário do coronavírus (5)

Pedro Correia, 29.03.20

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Saio de casa para uma longa volta a pé. Cerca de uma hora a desentorpecer as pernas. Curioso: noto mais gente na rua agora, que vivemos em estado de emergência, do que naqueles dias de reclusão voluntária, antes de ser emitido o decreto presidencial. Se não é, parece. Também o tráfego automóvel aumentou a olhos vistos. Para alguns portugueses, o "exercício físico" esgota-se nos passos que dão para chegar ao carro. 

Há várias mudanças visíveis aqui no bairro - desde logo o encerramento de grande parte dos estabelecimentos comerciais. Outros, como a emblemática geladaria Conchanata, só vendem para fora. Noto, pela primeira vez desde o início da crise sanitária, um par de farmácias sem clientes à porta. Vejo enfim gente nas varandas - algo impensável até há poucas semanas nestes bairros burgueses de Lisboa que mantêm uma relação esquiva com a rua.

Vão surgindo letreiros nas fachadas dos apartamentos, anunciando que estão para arrendar. Há pouco mais de um mês havia enorme pressão da procura, fazendo subir os preços no mercado de arrendamento. Agora a pressão ocorre em sentido inverso. Como as coisas mudam...

 

As pessoas vão reformulando hábitos enraizados. Liga-me um amigo distante, cuja voz é sempre bem-vinda mas há muito não escutava. Lembrou-se de fazer um telefonema por dia a antigos companheiros de várias lides - hoje tocou-me a vez. Palramos mais de meia hora ao telemóvel. Felicito-o pela iniciativa. Vale a pena ser replicada. 

Oportunidade também para pôr leituras em dia. No meu caso, continuando a revisitar autores portugueses do século XX - quase sempre com grande proveito, no capítulo estético e no domínio das ideias. Um destes livros é o magnífico O Malhadinhas, de mestre Aquilino, com a sua saborosíssima e original linguagem vinda dos confins de um Portugal que já morreu: «O bicho homem, quem quer que seja e o quer que faça, tem sempre consigo a mesma peçonha. E esta peçonha sabes o que é? É nunca estar contente com a sua sorte. Quanto mais tem mais apetece, deseja e torna a desejar para logo ou amanhã aborrecer. Como não há-de cansar-se da vida nesta alcatruzada de aborrecer e desejar?»

 

Na minha caminhada matutina, vejo algo inusual: alguém a transportar um gato pela trela. Conheci em tempos um cavalheiro, ali para as bandas do Liceu Camões, que todos os dias dava uma volta assim com o seu tareco. E em Tavira há outro, que até já fotografei. É curioso ver os bichanos domésticos imitarem com tanta fleuma felina os seus rivais canídeos nestes passeios higiénicos. 

Observo cada vez mais gente com máscara. Mas alguns insistem em trazê-la no alto da testa ou descem-nas até ao queixo, como se fosse uma atitude cool ou fashion. Neste põe-e-tira, como se aquilo fosse brinquedo, vão afinal baixando a guarda no combate ao vírus assassino.

Noto ainda que as pessoas tendem a desviar o olhar das outras ao passar por elas. Como se o Covid-19 se transmitisse por contágio visual. É fatal que muitos dos nossos pequenos comportamentos quotidianos perdurem muito para além da presente crise. Arrisco prever que não será para melhor.

 

Mas subsistem sinais de esperança. Num piso térreo, estende-se um lençol com pinturas feitas por crianças que nos garantem: «Vai ficar tudo bem.» Logo depois, no frondoso parque do Inatel, cruzo-me com um jovem casal de sorrisos estampados nos rostos, alheados das dores do mundo.

Vão de mãos dadas, o que me leva a concluir: serão estes os novos gestos subversivos a partir de agora.

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