Diário do coronavírus (4)
Dia do Pai confinado no apartamento, com a minha filha à distância: todo o contacto é virtual.
Eis um paradoxo do nosso tempo: habitamos um hemisfério que idolatra a natureza em proporção inversa ao desconhecimento que dela temos por estarmos mergulhados em múltiplas ilhas digitais que funcionam como mecanismos de substituição. Quanto mais estas bolhas se ampliam, maior é a sensação de vivermos num universo alternativo, progressivamente afastado do mundo real.
Entretanto, alguém me põe a par da "linguagem inclusiva": Dia do Pai é expressão passadista, condenada à extinção. Agora diz-se "dias dos pais", em obediência ao cânone da correcção política. Tal como a palavra mãe vem dando lugar a "progenitora". E a mulher grávida passou a denominar-se "ser gestante" de modo a abranger nem sei bem o quê.
Dizem-me que por estes dias há pequenas legiões de gatos e cães abandonados por donos que passaram a olhar para os animais com outros olhos: imaginam-nos agora potenciais "portadores de vírus", além de um peso acrescido no minguado orçamento doméstico, castigado pela recessão que já espreita e que nenhum paliativo governamental promete mitigar. Estes bichos, até agora denominados "animais de companhia" na etiqueta socialmente correcta, eram para muita gente o único e último vínculo à natureza que tanto se idolatra - e que inclui vírus e bactérias, transportando consigo uma crueldade inata, imposta pela lei do mais forte e pelo instinto de sobrevivência do mais apto. Nada consentâneo com aquilo a que chamamos civilização, erigida precisamente contra o fatalismo ritualista dos ciclos naturais.
Pressinto que estes dias serão terríveis para muita gente confinada a espaços herméticos de 30 metros quadrados, coabitando com pessoas que só costumavam ver em horários desencontrados e a quem se ligam por frágeis vínculos afectivos, sujeitos às pressões centrípetas para o isolamento que as novas tecnologias proporcionam. Beijos e abraços abolidos no quotidiano, com toda a sua carga simbólica, reforçam esta tendência para a misantropia exacerbada que constitui uma das marcas inequívocas deste início de século.
Desperta o primeiro dia neste país agora em estado de emergência, com um sol igual ao de outra manhã qualquer. Fotografo-o a elevar-se no horizonte, sobre a silhueta dos prédios fronteiros, enquanto raros transeuntes circulam no passeio em ritmo apressado. A natureza é assim, indiferente às dores e preocupações dos seres humanos.
Recordo outro momento de emergência na nossa vida colectiva, era eu adolescente, quando foi imposto o estado de sítio na região de Lisboa, em 25 de Novembro de 1975. Havia recolher obrigatório, as pessoas não podiam circular de noite sem salvo-conduto, a tropa patrulhava as ruas. Os jornais estavam proibidos: uns passaram a imprimir-se no Porto, de onde chegavam com uma aura de clandestinidade e eram lidos com avidez; outros, como o Diário de Notícias de José Saramago, fecharam por determinação superior.
A RTP emitia a preto e branco dos estúdios do Monte da Virgem, em Gaia, exibindo os rostos do poder - todos militares: Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo, Jaime Neves, Pires Veloso, Vasco Lourenço, Melo Antunes e um emergente Ramalho Eanes, de patilhas e óculos escuros, que meio ano depois ascenderia a Presidente da República. Só ele e Lourenço restam desse tempo em que Portugal parecia transformado numa imensa parada de quartel. Com Eanes, símbolo supremo do Thermidor português, o período revolucionário chegou ao fim.
Recolhidos durante duas semanas em casa, sem aulas, entretínhamo-nos com a leitura ou a ouvir música. Rodeados de livros e discos, à moda antiga. A internet não tinha sido inventada nem dispúnhamos de comunicações telefónicas instantâneas, as plataformas com múltiplas séries eram inexistentes e a oferta actual de centenas de canais televisivos não passava de utopia. Restava a RTP, exibindo fardas e camuflados. Só faces masculinas.
Ainda não se popularizara a igualdade de género nem a sociedade civil. Era outro século.