Diário do coronavírus (10)
Os restaurantes reabrirão na próxima segunda-feira. Não todos: cerca de um terço permanecerão fechados. Os proprietários decretaram falência, não aguentaram dois meses sem receitas, recusam acumular mais prejuízos. Porque, mesmo com a reabertura agora anunciada, os tempos serão muito difíceis. As pessoas desabituaram-se de comer fora e mantêm sérios receios sobre o rumo da pandemia. Quem não arrisca, não petisca - diz o ditado. Aqui é ao contrário: muitos dispensam o petisco, continuarão sem arriscar.
Tenho-me questionado, por estes dias, como será angustiante o quotidiano daqueles (ou daquelas, usemos o léxico em voga) que não cozinham. Conheço gente que não sabe estrelar um ovo, que é incapaz de fritar um bife, que ignora como se coze arroz. Nas filas das caixas de supermercado (soa já a antigo escrever assim), habituei-me a identificar as pessoas que cozinham por aquilo que compram. Se levam carne, peixe, ovos, legumes frescos - isso constitui um sério indício de que não se atrapalham entre panelas e frigideiras. Quem só leva latas e comida pré-confeccionada, evidencia elementar falta de perícia na cozinha. É o caso de muita gente jovem. Incluindo um número crescente de mulheres, algo impensável em gerações anteriores.
Se algo me trouxe de bom este já longo período de reclusão imposta pela força das circunstâncias, foi a redescoberta do prazer de cozinhar. Que inclui a planificação de ementas e a aquisição de víveres em função delas, além da preparação dos pratos em contínuas experiências culinárias para sacudir a modorra da rotina. Experiências bem-sucedidas, devo confessar com um grão de orgulho. E devidamente recompensadas, desde a fase em que irresistíveis odores vão invadindo a cozinha até ao momento em que a travessa chega à mesa.
Como já me puxa ao apetite enquanto escrevo estas linhas, apetece-me recordar aqui algumas das iguarias que tenho confeccionado com mais frequência nestas nove semanas sem frequentar restaurantes.
Arroz de chouriço Caldeirada de raia
Espargos, presunto e ovos Frango com mostarda e vinho do Porto
Massa com requeijão e cogumelos Ovas com pimentos e milho doce
Acompanhei-as, por vezes, com leituras. De escritores gastrónomos, como Rex Stout ou Vásquez Montalbán. Ou Mario Vargas Llosa, que faz reiteradas e sempre entusiásticas referências à boa mesa. Já para não falar em vultos da nossa literatura, como o incomparável Aquilino Ribeiro, que se regalava com um petisco bem confeccionado, empurrado por pinga a preceito.
Aqui ficam três citações, com a devida vénia, ao mestre que nos legou monumentos à língua portuguesa e expressivas homenagens à arte culinária:
De Quando os Lobos Uivam: «Filomena tinha-lhes um bom caldo de grão-de-bico adubado com pespé de cerdo e uma arrozada de coelho bravo. Comeram-lhe bem, beberam-lhe melhor.» (p. 95).
De Volfrâmio: «Na trempe, como muito bem calculara, frigia uma boa febra de porco com fígado do mesmo, o fígado do suíno beirão que é melhor que de vitela e se dissolve formando um molho sobre o grosso que é o regalo dos regalos.» (p. 221)
D' A Casa Grande de Romarigães: «Desde esse momentinho entregaram-se gostosamente à tasquinhação. O Lopes Calheiros trazia um lombo de vinha d'alhos, que era a primeira maravilha do Minho gastronómico. E estavam discorrendo sobre receitas culinárias - não há como o arroz de lampreia, se lhe adicionarem uma colher de manteiga de pato; uma posta de salmão com salada de alface e rodelas de cebola tenra vale um ano de Paraíso, hem, Padre Tirteu? Deixem lá, perdiz com couve murciana fermentada bate todos os petiscos inventados e por inventar.» (pp. 260-261)
Grande Aquilino: depois dele, e de Agustina, quase só encontro escritores enfastiados cá na terra. Matutam imenso, mas manducar não é com eles.
Ora vão por mim, caríssimos: fastio, nem vê-lo: haja apetite, haja saúde. E que o vírus se mantenha à distância.