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Delito de Opinião

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 21.06.25

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Livro dez: A Neve Estava Suja, de Georges Simenon

Edição Cavalo de Ferro, 2025

257 páginas

 

Surpreendente romance existencial de Georges Simenon ambientado durante a expansão nazi na Europa, em país ou região nunca expressamente mencionados – talvez na Flandres Oriental, numa vila afastada do oceano, atmosfera alegórica mesclada com o real. Onde nada é o que parece, sob o primado do medo. Onde todos suspeitam de todos. Onde ninguém, no fundo, pode reclamar inocência. Onde não sobra uma alma sem parcela de culpa para expiar. Onde cada pecado individual ganha dimensão colectiva. 

«Há muita gente a fazer um jogo duplo. Fuzilaram um que todos os dias era visto na companhia de oficiais superiores, e era tão conhecido que as crianças cuspiam na calçada quando ele passava. Agora, afirma-se que era um herói» (p. 65, tradução de Diogo Paiva).

O prolífico escritor belga escreveu-o longe dali, no seu voluntário exílio de Tucson, sudoeste dos Estados Unidos, onde se instalou depois da guerra. Não podia haver maior contraste climático entre as viscosas brumas da noite flamenga e a secura poeirenta do Arizona.

 

Esta “neve suja” simboliza a corrupção moral e política, irmãs siamesas. Ideias e escrita estão ao nível d’ O Estrangeiro, de Albert Camus, surgido seis anos antes, em 1942. Dois romances marcados pelo mesmo estigma do homicídio gratuito: quem prime o gatilho situa-se para além do bem e do mal. Mas enquanto Mersault mata por impulso na praia alegando súbita cegueira devido ao excesso de sol, o Fred Friedmaier de Simenon chega aos 19 anos sem jamais ter visto o mar e torna-se assassino com premeditação, instigado pelas trevas neste romance que decorre num Inverno que parece interminável. Quase todos os verbos estão no presente do indicativo, indiciando que o pesadelo pode perpetuar-se. Impossível restituir a neve à pureza original.

«Porque é que essas pessoas o haveriam de executar? Ele não lhes fez nada. Na verdade, abatem sobretudo aqueles que, de entre os seus, os traem, e Frank não pode traí-los, visto que os não conhece. É certo que o desprezam. Mas, tal como a sua mãe, tem muito mais a temer da cólera dos vizinhos, que se baseia em inveja, que não é senão um assunto de carvão, roupas quentes e provisões» (p. 141).

 

É possível aprender como se escreve ficção de qualidade lendo com a indispensável atenção livros como este não-policial de Simenon. A Neve Estava Suja é um dos seus 117 «romances duros» - ou negros ou psicológicos – publicados entre 1931 e 1972. Dois agora disponíveis em Portugal nesta nova série da Cavalo de Ferro. 

O criador de Maigret tinha como lema «escrever é cortar». Notável economia de meios, acentuando a tensão dramática. 

Hoje, pelo contrário, vai sendo rara a obra literária com menos de 400 ou 500 páginas. Também na literatura portuguesa. Gente que gasta cada vez mais palavras para dizer cada vez menos.

 

Sugestão 10 de 2016:

Bairro Ocidental, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2017:

Santos e Milagres, de Alexandre Borges (Casa das Letras)

Sugestão 10 de 2018:

Sonhos Públicos, de Joana Amaral Dias (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2020:

A Minha Intenção, de Czeslaw Milosz (Cavalo de Ferro)

Sugestão 10 de 2021:

O Retorno, de Dulce Maria Cardoso (Tinta da China)

Sugestão 10 de 2022:

De Quase Nada a Quase Rei, de Pedro Sena-Lino (Contraponto)

Sugestão 10 de 2023:

Perseguição, de Jorge de Sena (Assírio & Alvim)

Sugestão 10 de 2024:

O Príncipe da Democracia, de Nuno Gonçalo Poças (D. Quixote)

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