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Delito de Opinião

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 18.06.25

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Livro sete: Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva

Edição D. Quixote, 2025

271 páginas

 

Há momentos que mudam a vida de uma pessoa para sempre. Aconteceu com Marcelo Rubens Paiva num dia que ele jamais esquecerá. Foi a 20 de Janeiro de 1971, feriado municipal no Rio de Janeiro, sufocante jornada de Verão: sujeitos ligados à aeronáutica militar entraram sem avisar na residência da família, na zona Sul da cidade, e levaram com eles o pai. Rubens Beyrodt Paiva nunca mais foi visto.

Engenheiro de profissão, antigo deputado, neto de imigrantes portugueses por via paterna, Beyrodt Paiva tinha 42 anos. Participou na equipa pioneira dos construtores de Brasília. Não lhe era conhecida militância política desde que integrara a bancada parlamentar do Partido Trabalhista entre 1962 e 1964, quando um golpe militar pôs fim ao regime democrático.

Na altura perdeu direitos políticos e esteve nove meses exilado na Europa. Regressado ao Brasil em 1965, trabalhou como engenheiro civil e detinha as empresas Geobrás e a Paiva Construtora. O pai, advogado e grande proprietário rural no estado de São Paulo, era apoiante assumido da ditadura castrense, então no seu período mais duro.

 

Naquele dia, Paiva foi conduzido ao quartel do comando da III Zona Aérea, onde começou a ser agredido. Depois levaram-no ao quartel da Polícia do Exército, onde seria alvo de sevícias até à morte ao som da canção “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos. Sucumbiu implorando que lhe dessem água e repetindo sem cessar o próprio nome. Factos comprovados por outros detidos naquele antro de tortura.

Marcelo Rubens Paiva tinha 11 anos quando viu o pai sumir para sempre. A partir daí acompanhou de perto a tenaz luta da mãe, Eunice, em busca da verdade. Outras pessoas, no lugar dela, teriam desistido. Mas Eunice revelou fibra de resistente. Jamais baixou os braços. Desmontou todas as mentiras que o poder político e as cúpulas militares iam vomitando, sem assumirem o cobarde homicídio.

O corpo nunca seria recuperado.

 

Ainda Estou Aqui narra-nos esta história, dramaticamente verídica. História de que emerge, como heroína, a mãe do autor. Sem Eunice, o crime ficaria por investigar. Nem teria sido confirmado pela Comissão Nacional da Verdade, quatro décadas após o rapto e homicídio do malogrado engenheiro Paiva.

Ela ficou viúva com 41 anos e cinco filhos menores a seu cargo.  Marcelo, o único rapaz, confessa nesta tocante autobiografia de 2015 ter passado por um período traumático na pré-adolescência. «Me fechei. Meu olhar ficou triste, como o de nenhum outro moleque. Muitos me passaram a evitar. Eu era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do país, eles aprendiam com alguns pais e professores, liam na imprensa, viam nos telejornais.»

Durante demasiado tempo, nada se sabia do engenheiro: só que estava desaparecido. A família viu-se impedida de exercer o direito ao luto. Até hoje nem se sabe o dia exacto da sua morte, que terá ocorrido na madrugada de 22 de Janeiro de 1971. «Cada um dos filhos o enterrou à sua maneira, em épocas diferentes, silenciosamente. Depois de um, dois anos, dois anos e meio… O tempo era o seu atestado de óbito. A demora, a comprovação que faltava.»

Estamos perante um livro impressionante. Pungente a espaços, mas sem nunca puxar à lágrima fácil nem fazer a menor concessão a chavões ideológicos. Denota uma claridade moral que transparece também no recente filme homónimo de Walter Salles, com Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, justamente galardoado com o Óscar para melhor filme estrangeiro.

A realidade, neste caso, confere forma e conteúdo à ficção. Nada disto exclui a arte. Porque a arte, sendo autêntica, é prolongamento natural da vida.

 

Sugestão 7 de 2016:

O Bosque, de João Miguel Fernandes Jorge (Relógio d'Água)

Sugestão 7 de 2017:

1933 Foi um Mau Ano, de John Fante (Alfaguara)

Sugestão 7 de 2018:

O Visitante da Noite & Outros Contos, de B. Traven (Antígona)

Sugestão 7 de 2019:

Um Futuro de Fé, do Papa Francisco e Dominique Wolton (Planeta)

Sugestão 7 de 2020:

Acordo Ortográfico - Um Beco Com Saída, de Nuno Pacheco (Gradiva)

Sugestão 7 de 2021:

O Silêncio, de Don DeLillo (Relógio d'Água)

Sugestão 7 de 2022:

Diários (1950-1962), de Sylvia Plath (Relógio d'Água)

Sugestão 7 de 2023:

«O Mais Sacana Possível», de António Araújo (Tinta da China)

Sugestão 7 de 2024:

Inglaterra: Uma Elegia, de Roger Scruton (Guerra & Paz)

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