Dez livros para comprar na Feira
Livro três: Memórias Minhas, de Manuel Alegre
Edição D. Quixote, 2024
403 páginas
Manuel Alegre é conhecido sobretudo como poeta, autor de títulos tão marcantes como O Canto e as Armas e Senhora das Tempestades. Mas tem feito frequentes incursões pela ficção literária, como na novela Cão Como Nós (2002), uma das melhores obras publicadas no nosso idioma com um animal no centro. Enquanto ia praticando o memorialismo esparso nas crónicas de O Futebol e a Vida (2006) e nos ensaios de Uma Outra Memória (2016). E se retratava como Rafael, nome de aventureiro romântico, no romance homónimo (2004).
Faltava este livro na sua extensa bibliografia, iniciada há seis décadas. Memórias sem disfarce, com a carga subjectiva que este género sempre transporta e o poderoso testemunho que transmite às gerações mais jovens. Relato de tantos episódios marcantes da sua vida, que dava um filme. Ou vários filmes. Impressões digitais de um tempo irrepetível, desdobrado em várias etapas – de Coimbra a Luanda, de Paris à Lisboa pós-1974, passando por Argel.
Acompanhamos o seu percurso desde Águeda, terra natal que já evocara em Alma, romance de 1995. Entramos com ele no casarão familiar à beira-rio. «Sou um republicano com uma costela sentimental monárquica. Meu pai dizia-se um monárquico sem rei. E eu sinto-me por vezes um republicano sem república.»
Seguem-se os anos escolares: Lisboa, Porto, enfim Coimbra – cidade dos «amores incompletos», sempre «os que mais demoram a morrer».
A natação, o futebol, os primeiros versos, o convívio juvenil com figuras que ascenderam ao Olimpo das letras, como Herberto Helder e Fernando Assis Pacheco. O activismo universitário, a militância clandestina no PCP, a residência fixa nos Açores. Depois a tropa, a mobilização para Angola. «Eu era contra aquela guerra, mas sentia a ancestral sedução do risco, do perigo e do combate.»
Memórias em 36 capítulos, pontuadas por datas lapidares. 31 de Maio de 1958: o dia em que Humberto Delgado, na campanha presidencial, mobilizou uma impressionante massa de apoiantes em Coimbra, despertando-lhe uma vocação política. 17 de Abril de 1963: o dia em que foi detido pela PIDE, em Angola. 12 de Maio de 1964: o dia em que mergulhou na clandestinidade, no Norte de Portugal, antecipando-se a nova detenção às ordens da polícia política. 2 de Maio de 1974: o dia em que regressou ao país, após uma década de exílio na Argélia. 13 de Dezembro de 1974: o dia da inauguração do congresso do PS, em que se destaca como principal orador, virando a opinião maioritária dos delegados a favor de Mário Soares, contra a corrente radical de Manuel Serra que ameaçava transformar o partido num satélite do PCP.
Estas Memórias Minhas narram-nos muitos episódios dos bastidores políticos. Um dos mais divertidos ocorreu em 1977. Soares era primeiro-ministro, num fim de tarde recebeu em São Bento o secretário-geral comunista, Álvaro Cunhal. A entrevista foi-se prolongando, à porta fechada, parecia interminável. «Abri a porta e deparei com os dois sentados em frente à televisão. Estavam a ver, regalados, Gabriela, Cravo e Canela, a telenovela que foi, em si mesma, uma revolução cultural e um factor importantíssimo de distensão social.»
Recordações de um poeta que se candidatou duas vezes à Presidência da República, em 2006 e 2011. Hoje reconhece que a segunda tentativa foi um erro, após os 20% de votos recolhidos na primeira corrida a Belém, sem siglas partidárias. Regressou a tempo inteiro à literatura, a maior das suas paixões.
Na década de 90, quando lhe faltavam cem páginas para concluir Alma, sofreu um enfarte do miocárdio durante o funeral de um amigo em Soure. Prontamente assistido em Coimbra, salvou-se. No hospital, mais tarde, relataram-lhe o que sucedera: «Já tinham ouvido gritar pelas mães, pelas mulheres, mas nunca tinham visto um tipo a pedir-lhes: Vejam lá se me salvam para eu acabar o livro.»
Depois já publicou mais trinta. E não parece ter a menor vontade de ficar por aqui.
Sugestão 3 de 2016:
Política, de David Runciman (Objectiva)
Sugestão 3 de 2017:
A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras)
Sugestão 3 de 2018:
Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor)
Sugestão 3 de 2019:
Lá Fora, de Pedro Mexia (Tinta da China)
Sugestão 3 de 2020:
ABC da Tradução, de Marco Neves (Guerra & Paz)
Sugestão 3 de 2021:
Intervenções, de Michel Houellebecq (Alfaguara)
Sugestão 3 de 2022:
O Meu Irmão, de Afonso Reis Cabral (Leya)
Sugestão 3 de 2023:
Malina, de Ingeborg Bachmann (Antígona)