Dez livros para comprar na Feira
Livro sete: «O Mais Sacana Possível», de António Araújo
Edição Tinta da China, 2022
311 páginas
Eis uma obra que já tardava. Lança luz sobre uma das mais fascinantes revistas publicadas em Portugal no século XX: Almanaque. Teve vida efémera: começou em 1959, terminou em 1961. Mas foi quanto bastou para perdurar na memória de quantos a conheceram - happy few, naquele Portugalzinho em que Lisboa era aldeia em ponto grande, onde todos se encontravam à mesma hora nos mesmos lugares, dia após dia, noite após noite. Apenas homens: neste circuito não havia mulheres. Alguns perdidos nos dédalos do álcool que lhes foram consumindo o talento.
António Araújo tem o mérito de cartografar esta geração de artistas, literatos, malabaristas da palavra, mestres do trocadilho, nascida há cerca de cem anos e que parecia demasiado avançada para a sua época. Na linguagem emancipada que se demarcava em simultâneo do cânone do Estado Novo e da ganga neo-realeira dos comunistas. Na estética cosmopolita que cruzava a pop art com o olhar urbano digno de discípulos de Cartier-Bresson.
Era um bando de jovens irrequietos. Na escrita, José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Alexandre O'Neill, José Cutileiro, Augusto Abelaira, José Palla e Carmo, Mário Ventura, Baptista-Bastos e Vasco Pulido Valente (o benjamim, com 17 anos). Na ilustração e no desenho, Sebastião Rodrigues, Luís Filipe de Abreu, João da Câmara Leme, Paulo Guilherme e João Abel Manta. Na fotografia, Armando Rosário, Eduardo Gageiro e João Cutileiro. Em Outubro de 1959, caiu-lhes no sapatinho uma prenda antecipada de Natal: o próspero proprietário da editora Ulisseia, um mecenas cultural chamado Joaquim Aires de Figueiredo Magalhães (1916-2008) - «o primeiro editor moderno português», como lhe chamou Manuel Alberto Valente - deu-lhes a oportunidade de criar este projecto.
Gente que se dedicava às artes e às letras. Mas também às noitadas, às jantaradas, às revoluções imaginárias. «Nenhum deles tinha um percurso escolar ou profissional definido e uma carreira ou ocupação a tempo inteiro», observa Araújo.
Salazar desprezava estes intelectuais lisboetas que haviam nascido pouco antes ou pouco depois do 28 de Maio de 1926: chamava-lhes, não sem razão, «oposição de café». Gente que se cruzava no mesmo espaço - um território que ia do Rossio ao Príncipe Real, com epicentro no Chiado. Como sucedera um século antes com a geração de Eça e Oliveira Martins. Como sucedera meio século antes com a geração de Pessoa e Almada - este, não por acaso, também deixou assinatura no Almanaque com o conto "O Cágado".
Ali pelo Bairro Alto, pelo Carmo e pela Trindade, juntavam-se jornais, livrarias, galerias, editoras, tipografias, incontáveis cafés e restaurantes, os inevitáveis lupanares. E também os serviços da Censura. Numa bizarra amálgama, que acentuava o timbre aldeão da capital do país. «Assim que abriu, o Almanaque, estrategicamente situado na Rua da Misericórdia, passou a ser uma espécie de clube, onde as pessoas iam de manhã diluir o álcool de véspera e combinar almoços», recordaria Vasco Pulido Valente.
A revista surge num momento em que, apesar da ditadura, se lia mais do que nunca em Portugal: em 1960 há registo da publicação de 6339 novos livros, «uma triplicação notável face aos 1920 títulos de 1949», como salienta o autor. Apresentou-se como mensal e quase cumpriu por completo a promessa: saíram 18 edições, a última das quais em Maio de 1961. Já a guerra começara em Angola.
«Este ALMANAQUE é um herdeiro irreverente dessa gloriosa família de anciãos. Vem ao gosto moderno, segundo a "linha 1959", trata por tu o teatro de Beckett e Ionesco, os escritores da Beat Generation, os Pat Boone ou os Georges Brassens, os íntimos da Françoise Sagan e as verdadeiras causas do caso Pasternak. Só não conhece os segredos dos painéis de Nuno Gonçalves, mas há-de chegar lá um dia.» Palavras contidas no texto de apresentação da revista, que tinha algo de megalómano, como evocou Pulido Valente muitos anos depois: «Cem páginas, papel pesado, um preço delirante.»
Vários dos seus membros conspiravam contra a ditadura, apesar de Figueiredo Magalhães cultivar boas relações nos círculos do regime. Mas a quase lendária irreverência da revista - antecipando autores futuros, como Miguel Esteves Cardoso, Manuel João Vieira ou Rui Zink - registava-se sobretudo na forma, não no conteúdo. Como o autor deste detalhado livro conclui: «Num balanço global, avulta muito mais o perfume de um certo hedonismo burguês e diletante e o gosto pelo sarcasmo do que propriamente uma intenção de causticar as autoridades ditatoriais ou sequer o meio intelectual português de então.»
«O mais sacana possível» porquê?
Por ser este o espírito da publicação, em frase cunhada por Cardoso Pires para lhe definir tendência e estilo. Este dito chocarreiro condensava o espírito da revista, marco de um tempo irrepetível, de uma conjugação astral única. Todos ali tocados por um espírito boémio, vários vivendo numa espécie de adolescência em estado perpétuo que os fazia levar poucas coisas a sério.
Alguns, com toques de genialidade, podiam ter construído grandes obras se fossem tão persistentes e determinados como eram irreverentes. Ficou-lhes o rasto em títulos esparsos e neste meteórico Almanaque cuja história António Araújo tão bem resgatou do esquecimento.
Sugestão 7 de 2016:
O Bosque, de João Miguel Fernandes Jorge (Relógio d'Água)
Sugestão 7 de 2017:
1933 Foi um Mau Ano, de John Fante (Alfaguara)
Sugestão 7 de 2018:
O Visitante da Noite & Outros Contos, de B. Traven (Antígona)
Sugestão 7 de 2019:
Um Futuro de Fé, do Papa Francisco e Dominique Wolton (Planeta)
Sugestão 7 de 2020:
Acordo Ortográfico - Um Beco Com Saída, de Nuno Pacheco (Gradiva)
Sugestão 7 de 2021:
O Silêncio, de Don DeLillo (Relógio d'Água)
Sugestão 7 de 2022:
Diários (1950-1962), de Sylvia Plath (Relógio d'Água)