Dez livros para comprar na Feira
Livro três: Malina, de Ingeborg Bachmann
Edição Antígona, 2022
310 páginas
Digressão quase dilacerante (incluindo traços premonitórios da trágica morte da autora austríaca) aos abismos da depressão neste romance que caminha sobre uma camada de gelo muito frágil, ameaçando quebrar-se a qualquer momento. "Autoficção", é o que proclamam agora em parangonas, desde o recente Nobel atribuído à francesa Annie Ernaux, como se fosse novidade. Mas não é. Basta lembrar que este livro tem mais de meio século: apareceu em 1971.
Dramaturga, poetisa e romancista, Ingeborg Bachmann - nunca expressamente mencionada no texto, excepto pela inicial do nome, conferindo à obra reminiscências kafkianas - tenta exorcizar fantasmas pessoais, com alusões abertas ou veladas à ocupação da Áustria, primeiro pelos nazis, depois pelos soviéticos até 1955, mesclada na relação de amor-ódio face ao pai, presumível colaborador do ocupante germânico. Na idade adulta encontra dois pais "substitutos" na relação assexuada com homens de temperamentos muito diferentes, Ivan e Malina, mas nenhum será capaz de libertá-la do declive em que se afunda.
Notável, embora de leitura nada fácil, o capítulo dominado pela sucessão de pesadelos: o freudianismo anda aqui à solta. Num segmento do livro intitulado "O Terceiro Homem", em óbvia alusão à novela de Graham Greene também ambientada na Viena do pós-guerra. «Estou na câmara de gás, é o que é, é a maior câmara de gás do mundo e eu estou sozinha dentro dela. Não há defesa contra o gás. O meu pai desapareceu; ele sabia onde estava a porta e não ma indicou, e enquanto vou morrendo, morre também o meu desejo de voltar a vê-lo e de lhe dizer o mais importante.» (Tradução de Helena Topa.)
«Ingeborg Bachmann é a primeira mulher da literatura do pós-guerra no espaço de língua alemã a retratar, através de meios radicalmente poéticos, a continuação da guerra, da tortura, da aniquilação na sociedade e nas relações entre homens e mulheres», sublinha em posfácio outra escritora austríaca, Elfriede Jelinek (Nobel de 2004). Habitante de um Estado de fronteira, habituada a escutar e a falar italiano e esloveno, Bachmann viveu a entrada das tropas hitlerianas na Caríntia, aos 12 anos, como um quadro de horror em estado puro.
Eis um dos objectivos da literatura de qualidade: ajudar-nos a entender melhor a natureza humana, nas suas luzes e sombras. Malina aproxima-se da perturbante Campânula de Vidro (1963), de Sylvia Plath, embora em toada ainda mais agreste e radical. Viagem ao fim da noite sem vislumbre de resgate.
Sugestão 3 de 2016:
Política, de David Runciman (Objectiva)
Sugestão 3 de 2017:
A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras)
Sugestão 3 de 2018:
Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor)
Sugestão 3 de 2019:
Lá Fora, de Pedro Mexia (Tinta da China)
Sugestão 3 de 2020:
ABC da Tradução, de Marco Neves (Guerra & Paz)
Sugestão 3 de 2021:
Intervenções, de Michel Houellebecq (Alfaguara)
Sugestão 3 de 2022:
O Meu Irmão, de Afonso Reis Cabral (Leya)