Dez livros para comprar na Feira
Livro dois: Primeira Memória, de Ana María Matute
Edição Narrativa, 2020
235 páginas
Conhecemos pouco da ficção espanhola contemporânea. E é pena, porque há excelentes escritores no país vizinho. Com muito mais qualidade, tantas vezes, do que alguns norte-americanos que preenchem o mapa literário graças aos poderosos circuitos da propaganda mediática.
Uma das vozes mais originais do romance de expressão castelhana na segunda metade do século XX foi a de Ana María Matute (1925-2014), que transformou em narrativa literária o amargo testemunho dos anos de chumbo da guerra civil espanhola, marcando-a para sempre. Em 2010 recebeu o Prémio Cervantes pelo conjunto da sua obra.
Primeira Memória fala-nos desse traumático Verão de 1936, um dos mais sangrentos de que há registo no país vizinho, quando havia famílias fracturadas pelo ódio ideológico mais sectário e qualquer divergência política podia ser paga com a vida.
Matia, órfã de mãe, e o seu primo Borja são recolhidos nesse trágico mês de Agosto em casa da avó, rica proprietária rural das Baleares, onde os ecos do conflito chegavam mais distantes. Os pais de ambos estão ausentes na península, cada qual combatendo na sua trincheira, o que não afecta o entendimento entre os primos - ele com 15 anos, ela com 14. Nesse torrão rural da ilha onde nada parece suceder, em tardes inundadas de calor, farão descobertas essenciais sobre as luzes e sombras da vida.
«Não pensem que à hora da morte recordarão grandes aventuras nem momentos felizes que ainda possam vir a viver. Apenas coisas como esta: uma tarde assim, um copo de vinho, as rosas cobertas de água», diz-lhes um velho marinheiro aposentado de navegações que podia emanar das páginas de um Joseph Conrad.
Distinguida em 1959 com o prestigiado Prémio Nadal e publicada no ano seguinte, Primeira Memória tem competente tradução de Vasco Amaral, que capta com exactidão o elegante estilo da escritora e a agreste candura do olhar da protagonista.
Raras vezes a literatura nos proporciona um retrato tão convincente e até comovente de uma rapariga prestes a despedir-se em definitivo da infância e a mergulhar no poço fundo da idade adulta. Com os tambores da guerra soando ao longe naqueles dias em que o sol se tingia de sangue, metafórico e real.
Sugestão 2 de 2016:
Nada, de Carmen Laforet (Cavalo de Ferro)
Sugestão 2 de 2017:
Singularidades, de A. M. Pires Cabral (Cotovia)
Sugestão 2 de 2018:
Deuses de Barro, de Agustina Bessa-Luís (Relógio d' Água)
Sugestão 2 de 2019:
A Língua Resgatada, de Elias Canetti (Cavalo de Ferro)
Sugestão 2 de 2020:
Três Retratos - Salazar, Cunhal, Soares, de António Barreto (Relógio d'Água)
Sugestão 2 de 2021:
Presos por um Fio, de Nuno Gonçalo Poças (Casa das Letras)