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Delito de Opinião

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 12.09.21

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Livro dez: O Retorno, de Dulce Maria Cardoso

Edição Tinta da China, 2019

267 páginas

 

Há livros que nos atingem com a força de um murro. Alterando a nossa forma de olhar o mundo, de encarar determinados acontecimentos históricos, as nossas certezas instituídas. É o caso deste magnífico romance, um dos melhores publicados nas duas últimas décadas no nosso idioma. Um romance em que os vencidos da longa guerra em Angola entram enfim em cena. Não os militares que recolheram às casernas após dois anos a brincarem às revoluções em Portugal. Mas os civis – aqueles de que ninguém fala, aqueles que tiveram a desdita de figurar no lado B da história.

Dulce Maria Cardoso viveu na pele essa experiência, transformando-a em matéria ficcional com uma autenticidade rara na literatura portuguesa. Adolescente, residente desde a mais remota infância em Angola – sua terra, claro, pois não conhecia outra que pudesse designar assim. Portugal era uma abstracção, plasmada nos rios e linhas férreas que os meninos decoravam nas aulas do ensino básico. Aliás nem diziam Portugal: era a “metrópole”. Não sabiam o que era o frio. Nunca tinham visto televisão. Ignoravam que, por cá, as pessoas vestiam quase sempre de escuro e raras vezes sorriam. Alguns adultos diziam que eles tinham aqui raízes, neste país onde a Coca-Cola estava proibida. Mas as suas raízes estavam lá. Na terra de onde foram arrancados à força e que passaram a transportar apenas na memória sulcada de cicatrizes. Na casa com dálias plantadas pela mãe, nas brincadeiras com a cadela Pirata que nunca mais viram.

Puseram-lhes um rótulo: eram os “retornados”. Mas retornavam como, se nunca tinham cá estado? Eram apontados a dedo, acusados de terem “explorado os pretos”, os professores relegavam-nos para os lugares mais afastados das salas de aula, a própria família daqui os ignorava. Formavam uma insólita irmandade com outros meninos nas mesmas circunstâncias. Aprenderam a substituir palavras: autocarro em vez de machimbombo, frigorífico em vez de geleira, pequeno-almoço em vez de matabicho. Nas horas do crepúsculo, contemplavam os caixotes acumulados no cais, alguns pertencentes a gente que jamais desembarcaria. Apodrecendo à beira-Tejo, rio sem crocodilos nem hipopótamos, cinco séculos depois das navegações que iniciaram tudo.

 

Este romance, publicado originalmente em 2011, está construído em torno de uma unidade familiar básica: pai, mãe, dois filhos adolescentes. Como aconteceu a tantos outros portugueses: pais oriundos de meio rural, com pouca instrução, rumando a Luanda muito jovens. Navegando num porão para fintarem a pobreza.

Mário, o pai, trabalha sem cessar. Acaba por conseguir uma pequena frota de transporte de mercadorias, faz questão de que a filha e o filho já lá nascidos estudem para que não se repita o fado da penúria ancestral. É também ele a semear a esperança naqueles dias fugazes em que a utopia da construção de uma nação livre e multirracial parecia possível numa Angola em que as armas se calavam. «Vamos construir uma nação nova, todos juntos, brancos e pretos, vamos construir uma nação mais rica do que a América.» Os alegres festejos de Ano Novo, em 31 de Dezembro de 1974, são páginas inesquecíveis deste romance.

O sonho não tardou a desfazer-se. E as armas voltaram a rugir, só mudaram de direcção. Apontando primeiro para os brancos – mais de meio milhão foram dali expulsos, em escassos meses, numa das maiores pontes aéreas de todos os tempos. Depois para os negros, fracturados em ódios tribais. Com massacres como o de 27 de Maio de 1977. Com uma prolongada guerra civil que só terminou neste século e deixou duas gerações de mutilados. Com uma feroz ditadura de partido único.

 

Mas de política não se ocupa O Retorno, nem da Angola pós-independência. Esta é a história de uma família em dois continentes, iniciada pouco depois do 25 de Abril de 1974, concluída pouco depois do 25 de Novembro de 1975. Uma família banal, envolvida em circunstâncias excepcionais. A família de Mário, o homem que viu o sonho desmoronar-se. Prestes a entrar na recta final da vida, sem sequer uma mala onde pudesse guardar alguns pertences, quis queimar a casa que construíra para que não fosse violentada por intrusos. Dizia ele: «Um homem pertence à terra que lhe dá de comer» Duas vezes expulso daquilo a que chamava seu país – da primeira vez na Europa, da segunda em África. Jurando perante os filhos que jamais voltariam a expulsá-los de lado algum.

Disto nos fala esta obra. Com rara sensibilidade, com desassombro intelectual, assumindo-se como voz de uma geração traída – demasiado tempo silenciada, demasiado tempo oculta. Relato construído na primeira pessoa, pela voz de um rapaz de quinze anos. Difícil desafio formal, semelhante ao do equilibrista no arame, que a autora supera com distinção. E nos envolve como poucas vezes tem sucedido na ficção contemporânea.

 

Sugestão 10 de 2016:

Bairro Ocidental, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2017:

Santos e Milagres, de Alexandre Borges (Casa das Letras)

Sugestão 10 de 2018:

Sonhos Públicos, de Joana Amaral Dias (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2020:

A Minha Intenção, de Czeslaw Milosz

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