Dez livros para comprar na Feira
Livro oito: Ernestina, de J. Rentes de Carvalho
Edição Quetzal, 2018
317 páginas
Deliciosa narrativa autobiográfica, comovente (mas nunca lamechas ou piegas) homenagem de Rentes de Carvalho à sua família - povoada de luzes e sombras, como qualquer outra. Na linha de obras como A Escola do Paraíso, de José Rodrigues Miguéis, ou do assumidamente autobiográfico O Mundo à Sua Procura, de Ruben A. E também um impressionante retrato do Portugal do seu tempo de rapaz, repleto de assimetrias: viajar do Porto a Trás-os-Montes naquelas décadas de 30 e 40, por exemplo, era como mudar de continente.
Ernestina - publicado pela primeira vez em 1998, em homenagem explícita à mãe do autor, e alvo de sucessivas reedições - estabelece uma espécie de rima interna com Montedor, seu romance de estreia, que logo em 1968 mereceu elogios de José Saramago: «O autor dá-nos o quase esquecido prazer de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza (...), decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor.»
Transmontano há muito radicado em Amesterdão, onde leccionou Literatura Portuguesa entre 1956 e 1988, sem renegar as raízes em Estevais (concelho de Mogadouro), Rentes de Carvalho tem uma obra originalíssima. Cultivando o realismo despojado de rótulos doutrinários e assumindo sem complexos a plena apetência por contar histórias. De modo tão vívido como se viajássemos com ele àqueles dias em que a pobreza dominava a paisagem quotidiana do interior rural e a inscrevia como destino inelutável, em chocante contraste com o conforto usufruído pela burguesia citadina.
«Ninguém se lembraria então de associar a estrumeira da rua e a das casas - onde os animais tinham estábulo no rés-do-chão - com as terríveis doenças que os afligiam. Poucos eram também os que escapavam às "febres", a malária que os punha escaveirados, magros como espetos, e os atormentava no pino da canícula com calafrios que nenhum lume aquecia, seguidos de ardores que pareciam os das chamas do inferno.»
Memórias? Ficção? Crónica romanceada? De tudo um pouco. Os rótulos são o que menos interessa. Isto é literatura. Portuguesa. Da melhor.
Sugestão 8 de 2016:
Todos os Fogos o Fogo, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)
Sugestão 8 de 2017:
Prantos, Amores e Outros Desvarios, de Teolinda Gersão (Porto Editora)
Sugestão 8 de 2018:
Quem Meteu a Mão na Caixa, de Helena Garrido (Contraponto)
Sugestão 8 de 2019:
Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins (Bookbuilders)
Sugestão 8 de 2020:
A Ideologia Afrocentrista à Conquista da História, de François-Xavier Fauvelle (Guerra & Paz)