Destruição não-criativa
Em Agosto de 2019 contava a história verídica de uma empresa que foi assaltada pelo Fisco e obrigada a insolver.
Em 19 de Dezembro do mesmo ano o edifício e recheio foram à praça, o conjunto tendo sido arrematado pelo valor base da licitação. E mais de um ano volvido repegava na história para informar que ninguém tinha ainda visto um cêntimo dos 840.950,00€.
Já antes dois bancos credores haviam demandado os avalistas.
O país, impressionado pelos casos do BES, do BCP e dos outros, julga que os devedores à banca se ficam a rir e que quem encosta a barriga ao balcão é o contribuinte. Será, mas isso é para quem bebe do fino. O pequeno empresário tem como única defesa preventiva o não ter bens em seu nome, nem rendimentos declarados; e não faltaram no momento próprio advogados dos bancos (em sentido adjectivante: não propriamente advogados, antes com frequência economistas preopinando na comunicação social e no Parlamento) que, no que toca ao tratamento a dar às dívidas emergentes do crédito à habitação, defenderam com lata que quando o contratante, por ter perdido o emprego, deixasse de poder pagar as prestações, a entrega do bem não fosse ainda assim suficiente para extinguir o remanescente da dívida.
Desses dois bancos um já foi integralmente ressarcido (por valores que excediam o da dívida e com base em contas obscuras – o banco diz que se deve e pronto – mas nem por isso deixou de figurar como credor na lista respectiva, que se saiba), e o outro penhorou as pensões de dois ex-gerentes mas, nos mais de dois anos entretanto decorridos, recebeu aparentemente zero (se foi assim, graças a Deus não envia informação, senão ainda a debitava) porque os penhorados lá sem o dinheiro ficaram e continuam a ficar, mas a punção fica à guarda do processo, se é assim que se diz.
Ou ficava. Porque recentemente (e daí o ter regressado a este filme) fui notificado de que do bolo até agora recolhido o senhor Agente de Execução recebe, a título de honorários, 7.303,33€ mais 1.961,06€ de IVA, bem como um pouco mais de 800 Euros para despesas e alcavalas, e doravante o arame vai ter directamente ao credor, assim como o que já sobra depois destas deduções.
A dívida é que não para quieta porque entretanto conta juros (à taxa de 4%). E como com o produto da venda, conforme expliquei no segundo dos posts acima lincados
(… o edifício e as máquinas referidos na história para que remete o primeiro parágrafo foram leiloados em Dezembro e o conjunto foi arrematado por um valor que, mesmo sendo como foi de uva mijona, excedia largamente a totalidade do endividamento da firma, se excluirmos as indemnizações ao pessoal (decorrentes da insolvência que o Fisco induziu), a parte do endividamento que era, na realidade, capital, por não ser exigível nem implicar serviço de dívida, e a imaginária dívida fiscal, baseada em vendas sem factura que nunca existiram nem poderiam ter existido dada a natureza dos bens, os destinatários, que eram em mais de quatro quintos clientes de outros países, e o volume, por se tratar de bens de equipamento de grande atravancamento que implicariam gigantescas movimentações de TIRs clandestinos – uma fantasia que só poderia caber na cabeça retorcida de umas moças ou moços que ganham a vida estragando a de outros, sob a férula de uma hierarquia de agentes da Gestapo…)
uma parte, ou a totalidade, da dívida (obscuramente calculada, mais uma vez), já deveria ter sido liquidada há muito, isto vem a significar na prática que o executado paga juros pela inoperância de quem não escolheu e não tem qualquer incentivo para pôr termo a este escândalo em forma de exacção. Na prática, é isto: um banco fez um bom negócio e o outro está fazendo, a menos que se entenda que a taxa de juro de 4% não é suficiente; os agentes de execução (há vários) cumprem ronceiramente o seu papel; o administrador da insolvência não trabalhará de graça e, no fim, se se der ao trabalho de informar (porque direitos tem todos e obrigações menos) talvez se possa saber quanto ganhou; o arrematante não pagou até agora nada, não obstante as máquinas já lá não se encontrarem; o edifício degrada-se e o logradouro é hoje parque de estacionamento dos vizinhos; e o Fisco já fez reverter pressurosamente a imaginária dívida fiscal, que estadeia em tribunal.
Casos como este haverá muitos. E nada, absolutamente nada, nesta história, releva do domínio das inevitabilidades: a propósito do sistema fiscal português fala-se muito das taxas de imposto e pouco do regime de cobrança, mas é neste que se alojam absurdos inquisitoriais como a inversão do ónus da prova e a obrigação de pagar (ou apresentar garantias bancárias) para ter o direito de impugnar. E cabe lembrar, por exemplo, que o regime predatório do IVA (pagar impostos não recebidos como se fosse obrigação própria é apenas uma forma de racketeering, e quem o defende ou é ignorante, ou desonesto, ou comunista) só na propaganda tem de ser como é, sob a desculpa de o arranjo ser europeu.
Sobre fiscalidade tenho escrito muito e sobre o nosso instituto falimentar nada. E todavia, como este caso ilustra, os assuntos andam ligados: um Estado de onde está ausente o conceito de pessoa de bem não pode senão produzir, em casos limite, aberrações.
Estas aberrações não o são apenas porque o espírito das leis, numa sociedade civilizada, resulta ofendido quando um cidadão o é nos seus direitos; também porque a pitança que alguns ganham com o arrastar das coisas é o preço de unidades fabris decaírem sem proveito para ninguém. Liberais agudos, intelectuais profundos e economistas tontos, com perdão da redundância, são adeptos da destruição criativa. Eu acho que se ela resultar do jogo das forças do mercado está na ordem natural das coisas; e se resultar de intervenções do Estado na ordem antinatural do intervencionismo pateta.
Advogados neste processo há alguns, com diferentes especialidades e níveis de competência. Até o do Sindicato confessa: temos de esperar. Coitados: se lhes perguntasse responderiam decerto que vivemos num Estado de Direito.

