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Delito de Opinião

Desmistificar as fezes

Pedro Correia, 20.01.14

 

Uma caloira da Escola Superior Agrária de Santarém foi sujeita em Outubro de 2002 a uma "praxe" violenta que incluiu ser esfregada com excremento de porco e meterem-lhe a cabeça num bacio cheio de fezes. Denunciou o ocorrido numa carta ao ministro que tutelava o ensino superior e accionou judicialmente os responsáveis por tão edificantes práticas. O tribunal de Santarém acabou por dar-lhe razão em Maio de 2008, condenando seis ex-alunos daquela escola a multas entre 640 e 1600 euros. Um outro foi condenado por coacção.

Este caso - de que me recordei numa altura em que as praxes voltam a estar em questão a propósito da tragédia que vitimou seis estudantes universitários na praia do Meco - foi exemplar a vários níveis. Desde logo por culminar numa sanção judicial, embora pouco mais que simbólica, a autores de "praxes" degradantes e sexistas a que durante demasiado tempo as autoridades escolares fecharam os olhos, em nome de uma intolerável "tradição" académica. Também por constituir um acto de inegável coragem da ex-aluna da ESAS, que aliás se viu forçada a transferir a matrícula para o Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa.

Mas também foi exemplar por maus motivos. Quando um caso destes demora quase seis anos a ter um desfecho em tribunal, ficou tudo dito sobre o péssimo estado da justiça neste país que tanto gosta de proclamar a sua "modernidade" aos quatro ventos.

E é ainda tristemente exemplar também por isto: segundo relatou na altura o Público, em artigo da jornalista Andreia Sanches, entre os testemunhos abonatórios dos sete réus incluiu-se um ex-professor da Escola Superior Agrária que foi a tribunal garantir que "é preciso desmistificar as fezes". Enquanto o então director do estabelecimento assegurou que ali era "normal a praxe com bosta".

Com professores assim, com "responsáveis" assim, não admira que algum do nosso ensino "superior" esteja como está. Uma bosta.

8 comentários

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    Pedro Correia 20.01.2014

    Bosta e bestas: eis a síntese perfeita destas "praxes" que são um retrocesso civilizacional, meu caro.
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    Maria Rita 21.01.2014

    Boa tarde Pedro.
    Praxes de cinco, seis, nove anos atrás nem sempre traduzem as praxes atuais, nem a realidade de todas as instituições de ensino. Como já o disse aqui no blogue, generalizações são sempre o caminho mais fácil.
    Não me entenda de forma errada, nem como um ataque, mas tenho a apontar um aspeto curioso, como estudante que participa ativamente nas praxes, e praxa. Leio por aqui muitas opiniões de pessoas que odeiam cegamente a praxe, e que não se coibem de faltar ao respeito, e afrontar pessoas que se posicionam sobre esta questão de forma divergente, enquanto o contrário é raro encontrar. Vivemos numa democracia, mas pouco pelos vistos...
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    Pedro Correia 21.01.2014

    Olá, Maria Rita.

    Eu não escondo a minha posição nesta matéria, que é oposta à sua: sou contra as praxes - e radicalmente contra os exercícios de humilhação que acarretam, marcando por vezes de forma negativa, durante anos, aqueles que não têm vontade ou energia suficiente para recusarem ser praxados.
    O caso que menciono é um símbolo desse carácter negativo das praxes, com a agravante de ser "justificado" por responsáveis de um estabelecimento de ensino que se considera "superior".
    Veremos o que as autoridades policiais e judiciais apuram sobre o que aconteceu na Praia do Meco. Aparentemente tratou-se de uma praxe (ou ensaio de praxe) que redundou em tragédia. Uma tragédia que podia e devia ter sido evitada.

    Dito tudo isto, quero sublinhar que admito posições diferentes e até muito diferentes da minha. Como é lógico. Nesta ou em qualquer outra matéria. Não é por acaso que este blogue se chama DELITO DE OPINIÃO. Porque preza a opinião livre acima de tudo - ainda que alguns possam considerá-la um delito.
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    Maria Rita 21.01.2014

    Olá novamente.

    Este caso que apresentou teve realmente contornos verdadeiramente degradantes, não digo o contrário, mas um caso não traduz inevitavelmente outro. Também não me estava a dirigir-me a si em concreto (nem ao blogue, porque não sei se está recordado mas fiz-lhe uma entrevista para um trabalho universitário em que falava justamente do blogue), mas digamos que é revoltante assistir a algumas pessoas que se estão a aproveitar desta fatalidade como argumento. Querem proibir algo facultativo? Lógica zero.
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    Pedro Correia 21.01.2014

    Sim, Maria Rita: lembro-me, claro, e tive muito gosto em colaborar nesse trabalho.
    É inevitável: se for provada alguma relação entre a tragédia do Meco e as praxes, isso levará forçosamente a comunidade universitária - e a sociedade portuguesa em geral - a questionar seriamente até que ponto devem as praxes ser toleradas quando põem em risco a integridade física e a própria sobrevivência de jovens nelas envolvidos.
    É um dilema sério para os responsáveis universitários, para as comissões de praxe e para os estudantes em geral. Estes casos não podem ser encarados de ânimo leve.
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    Maria Rita 22.01.2014

    Claro que não! Como já o disse a ideia destes jovens foi realmente bastante infeliz. Não avaliaram bem o perigo, não tiveram limites, e isso está agora á vista de todos. Já o disse aqui, e volto a reforçar. Quantas, e quantas pessoas não se aproximam todos os dias do mar para fotografar, e acabam engolidas pelas ondas? São fatalidades. Não foram as praxes que entraram no mar, foram pessoas.
    O exemplo que apresentou é de 2008. Não traduz em nada a praxe atual. Para perceber o que lhe digo tinha de assistir não só ao durante, mas ao pós-praxe de cada instituição.
    Não concordo em terminar com a praxe mas, se este acidente tiver ocorrido em ambiente de praxe no máximo é urgente revê-la, para prevenir que não aconteçam mais fatalidades deste género.
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    Pedro Correia 22.01.2014

    De acordo consigo, no essencial. Se casos como o de 2008 contribuíram para alterar as praxes, tanto melhor. Mas parece-me haver ainda um longo percurso a percorrer nesta matéria. Para suprimir todas as formas de violência associadas às praxes - e não me refiro só a violência física, mas também a coacção moral e psicológica, e a todas as formas de humilhação, igualmente inaceitáveis.
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